PESSOAS OU PERSONAGENS? PARTE III B – BETH, A TERAPEUTA
( Continuação do post aí debaixo. )
– Eu vim aqui porque a minha supervisora falou que pra atender bem um paciente eu preciso fazer terapia.
A Beth não segurou um sorriso. Que coisa. Eu sabia, como psicóloga, porque ela estava rindo. Sabia que ela achava que era resistência, recalque, complexo e outros conceitos que eu tinha aprendido teoricamente tão bem, e fiquei brava. Oras, podia parecer, mas no meu caso não era não. Quem era resistente, eu? Humpft.
Reparei nela. Morena, cabelo liso, impecavelmente bem vestida, olhos negros e grandes, bem brilhantes, que davam a impressão de estar enxergando dentro de mim. Cheirosa, cheia de jóias, delicada, e com um óculos por perto, super charmoso. A sala não ficava atrás, parecia com ela. Arrumada, aconchegante, cheia de quadros, figuras, uma estante com enfeites, e uma mesa com livros. Ouvi novamente a voz calma dela.
– Tá, agora me conta de verdade: o que te trouxe aqui?
Repeti a frase de antes, já um pouco impaciente. Mas me esforçando pra sorrir e parecer natural. Me lembro do nervosismo da hora… Algo quase incotrolável. Eu me sentia como se alguém que eu nunca tivesse visto fosse tirar a minha roupa e me deixar nua em praça pública, pra todo mundo olhar. Exposta. Me lembro também de ter pensado em ir embora correndo. E por várias vezes pensei em nunca mais voltar.
Ela, percebendo o meu estado, foi me acalmando, fazendo perguntas amenas, e pediu licença pra anotar alguns detalhes. Nome, idade, onde mora, o que faz, se estuda, mãe, pai, irmãos, namorado. Fui respondendo tudo, tecnicamente. Pediu que eu falasse do trabalho no consultório, com os meus pacientes. Continuei falando, animadamente. E quando eu me senti confortável, ela provocou de novo.
– Quem é você de verdade? O que você realmente quer da vida?
Olhei pra ela com medo. Medo mesmo. Depois de um longo silêncio,
– Eu não sei.
– Afim de descobrir?
– Tô…
– Ótimo. Será um prazer te acompanhar.
E seguiu um longo discurso dela sobre dias e horários da sessão, preços, combinados de férias, de faltas, de pagamentos, de propostas de trabalho. Pediu pra que eu anotasse meus sonhos. Perguntou se eu concordava com tudo. Meio tonta, respondi que sim. E antes de encerrar, ela advertiu:
– Bem vinda. Não vai ser fácil, muito pelo contrário, é dificílimo, é dolorido, é complicado, é desgastante, é caro, é tudo. Mas é possível… E vai ser lindo, você vai ver.
Saí do consultório dela sem rumo. Errei a rua, tive que dar duas voltas a mais no quarteirão, andando de noite, ainda na chuva, em outro mundo. Estava com medo mesmo, sabia que dali não tinha mais volta. Não podia ser de outro jeito, e na semana seguinte eu estava lá. E na outra, na outra, na outra.
Aos poucos, fui aparecendo lá dentro. E não gostei do que vi. Vi que não estava tudo bem porcaria nenhuma. Que a vida tinha me dado muitas pancadas sem que eu tivesse chance de revidar. E que eu precisava aprender a me defender dos outros e de mim mesma, da minha dificuldade de dizer não, minha necessidade de agradar, minha auto-estima que vivia debaixo da sola do meu sapato, experiências terríveis de infância, o alcoolismo do meu pai, o descaso e exigência agressiva da minha mãe, o meu medo de amar e ser machucada, minhas defesas doidas, minhas manias estranhas, a minha voz tantas vezes sufocada. Isso tudo vinha em sonhos que eu tinha, desenhos que eu fazia, piadinhas sem graça, olhares, posturas. Eu, tão habitualmente emotiva, não chorava, não demonstrava emoção enquanto falava, como se estivesse falando de outra pessoa. Mas nada escapava aos olhos grandes da Beth, e tudo me era devolvido à exaustão. E nas entrelinhas dos meus discursos quase prontinhos de Poliana, ela ia me desmontando, sinalizando, provocando. E eu tinha raiva disso. E me sentia triste, desprotegida. Mas ela me acolhia, e eu voltava na semana seguinte de novo.
Por outro lado, também outras coisas surgiam. Facilidades, qualidades, possibilidades, caminhos, sucessos. E isso era tão bom, que quase viciava. Essa coisa de amar a si mesmo é tão boa quanto um copo de água quando você está morrendo de sede. Bálsamo, ar, vida.
Operacionalmente, era difícil fazer terapia. Ficava a uma hora e meia da minha casa pra ir, e mais uma hora pra voltar. Custava mais de um terço do meu salário. Minha família, meus amigos não apoiavam, achavam um absurdo, afinal de contas, eu não parecia louca. Era uma luta. Exigia esforço, exigia coragem, exigia abdicar de algumas coisas e pessoas. O sofrimento, às vezes, era muito intenso e eu me perguntava se tinha necessidade mesmo daquilo. Às vezes faltava, chegava atrasada, fazia quase greve de silêncio. Mas não desisti. E em muitos momentos, era porque a Beth estava lá pra me dar a mão e me puxar a orelha.
Comecei a mudar. Parei de trabalhar que nem louca, dei um pé em uma porção de coisas que eu fazia sem querer fazer, afastei de mim pessoas vampiras que só me sugavam, comecei a conhecer outras pessoas maravilhosas. Parei de ter posturas do tipo, ” sou assim mesmo, paciência”. Fui mudando, aos poucos, o cabelo, o jeito de vestir, onde ia, as coisas que eu lia e ouvia. De repente, era tudo insuportável e inadequado. Joguei muita coisa fora, adquiri tantas outras. Comecei a ficar mais desbocada. Cuidava mais de mim. Pintei as paredes do meu quarto, e da minha vida. Mudei o tom, a cor, o jeito, o que pendurava nelas. Comecei a fazer coisas, muitas coisas. Respeitei certas dores, sabendo que nelas eu não podia mexer, e aprendi a conviver com elas. A cada passinho, uma dor. Mexer nesse vespeiro não é fácil, ela bem que me avisou. Mas era lindo. E que bom que ela tinha me avisado disso também.
Beth era muito engraçada. A despeito da minha cara de espanto, ela seguia como se não tivesse dito nada demais. Ríamos muito juntas. Ela também me dizia coisas maravilhosas. “Escolha”. “Faça o que você mais teme”. “Aprenda a bater.” “Crie uma casca mais grossa.” “Sofra, mas não morra.” “Respeite os seus desejos, eles são tudo que você tem.” “Não sufoque a sua natureza.” “Tenha coragem.” E me enchia de questionamentos. Porquês, para quês, como assins, e se fosse de outro jeito. Tudo sem resposta.
Toda mudança exige deixar pra trás algumas coisas. E pra uma moça teimosa e apegada como eu, isso era uma dificuldade. Enquanto fiz terapia, muitas coisas aconteceram. Perdi pessoas. Mudei de emprego. Briguei inúmeras vezes com pessoas que eu amava. Aprendi a amar outras que odiava. Questionei convicções.Aprendi a perdoar. Tive um grande amor, e um coração partido, e depois amei de novo, e de novo. E tudo em pouco tempo, e rápido, e exigindo tudo de mim.
Depois de ficar um bom tempo com o Danielzinho e outros pacientes, torci o tornozelo em dois lugares, e quando voltei da licença, decidi abandonar tudo. Algo ali tinha se quebrado, e eu não sabia o que era. Depois, descobri que não aguentava mais cuidar dos outros. Precisava cuidar só de mim. E a razão que tinha me levado pra terapia desapareceu. Ficou só eu… E tudo que eu era.
Aos poucos, as sessões ficaram mais profundas e ao mesmo tempo mais divertidas. Tudo que ela mandava eu ler, todos os sonhos que eu contava, todas as frases que ela dizia, tudo eu admirava e adorava. E assim o tempo foi passando, e passando. E tudo se transformando.
Chegou um tempo na minha vida em que eu gostava de tudo. Gostava da minha casa, da minha família, dos meus amigos, dos meus empregos, do jeito que lidava com os moços, da maneira de encarar o mundo. Não deixava mais ninguém pisar nos meus sonhos. Escolhia os meus caminhos por mim mesma, e se quebrava a cara, sofria o que tinha que sofrer sem vergonha, até que eu conseguisse rir disso. Me soltei como filha, como irmã, como profissional, como mulher, como namorada. E chegou um tempo na minha vida em que olhava no espelho e tinha orgulho de quem eu era, da minha história, dos meus sonhos, e do que fazia, e principalmente orgulho do que eu sentia. Finalmente, a minha vida era minha de verdade. E eu me sentia uma pessoa. Não que não tivesse problemas. Mas eu me sentia mais forte do que eles, me sentia inteira, corajosa, firme, e ainda assim tranquila. E não tinha mais tanto medo.
Todas as semanas, eu ia lá contar pra Beth como eu estava crescida, como eu era feliz, como era bonito tudo que eu fazia, como eu era amada por mim mesma e pelas pessoas. E ela curtia comigo esses momentos, ríamos e nos divertíamos. Muitas vezes ela me olhava com o mesmo brilho nos olhos que eu admirava os meus alunos quando eles finalmente conseguiam escrever o próprio nome. Eu sabia que, fossem garis, executivos, artistas ou bandidos, eles sempre começariam dali, daquele nome escrito no papel. Em outros níveis, era assim entre a Beth e eu, ela sabia que fosse quem eu fosse, eu não esqueceria de tudo que aprendi anquele período. Até que um dia, foi inevitável.
– Escuta, Beth, eu queria tirar um mês ou dois pra me organizar financeiramente… Dar um tempinho aqui.
– Sim, sim, sim! Achei que você não ia se tocar!
– Uai, me tocar do quê?
– Que já chega, pelo menos por enquanto. É hora de você ir.
Minha cara de pânico deve ter sido igual a que eu fiz no primeiro dia, aquele da tempestade, porque ela sorriu quase do mesmo jeito. Experimentar a vida sem a Beth parecia impossível. Eu não tinha me tocado, até ali, que a mudança não era ela quem tinha feito, mas eu. E o que era meu, ninguém podia levar.
– Pensa que é fácil pra mim te dizer isso, Mafalda? Não é, não. Mas você não precisa mais de mim. Aquela menina de antes ficou lá atrás. Agora você é uma mulher. E precisa ir pra vida, se experimentar sozinha. Não se preocupe, vai dar tudo certo. E o que não vai dar certo, você vai tirar de letra. Você desabrochou. Estou assinando sua alta, se é que você segue alguma ordem de alguém.
Quis chorar. Mas não chorei. Saí de lá contente, radiante. Liguei pra alguns amigos, cheguei em casa contei pra minha mãe, mais tarde contei pro meu namorado na época. Todos felizes por mim. Fui lá, comprei um presente pra ela, fiz um cartão dizendo um pouco disso tudo, e aceitei o lance da “alta”. Quando saí de lá depois de um abraço daqueles, senti a mesma tremedeira do primeiro dia. Mas fui em frente, feliz, feliz.
Na primeira dificuldade que encontrei, pensei em ligar pra ela e dizer que ela não devia ter me dado alta. Mas ela diria pra eu me virar. E eu me virei. Muitas, e muitas vezes. E não foi tão difícil assim não.
Eu poderia ter ficado como eu era. Era uma escolha. Mas não quis. Talvez um dia eu volte a fazer terapia. Não sei. Mas se tem algo que eu digo com certeza é que encontrar a Beth e trilhar esse caminho com ela do meu lado foi a melhor decisão que eu já tomei na vida. E era tanta vida que eu nem sabia…
