O QUE REALMENTE IMPORTA

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Sílvia M. teve a vida marcada pela dor. Seu pai, um de seus irmãos, seu marido e dois de seus filhos eram alcoólatras. Um dos filhos morreu em um acidente de carro, quando voltava pra casa totalmente bêbado, de madrugada. Sílvia sempre conta que sofreu tanto que chorou todas as lágrimas que tinha. Hoje, não chora mais. Hoje, Sílvia trabalha, e muito, pela organização que a ajudou a manter-se de pé – o Al-Anon.
Todas as segundas, quartas e sextas, Sílvia deixa sua casa e atravessa parte da cidade de São Paulo para chegar ao lugar onde se reúne com pessoas de idades, valores e referências diferentes, que em comum só têm o fato de terem suas vidas arrasadas pelos efeitos do álcool em suas famílias. Geralmente, essas pessoas chegam até as reuniões sem esperança nenhuma, com muita dor, mágoa e tristeza nos olhos, despedaçadas. Sílvia conta, com voz mansa, detalhes doloridos e humilhantes de sua história. Conta como aprendeu a gostar de si mesma. Como, aos poucos, conseguiu ajudar o marido a perceber sua doença e recuperar-se. Como teve seu lar reconstruído. E ouve cada pessoa com muita atenção e compaixão. Quem fala com Sílvia, já se sente restaurado pela serenidade de suas palavras e pela força de seu exemplo.
Ao ser questionada por que falar tantas vezes de sua dor, por que expor-se dessa maneira e relembrar tantas vezes coisas que deveriam ser esquecidas, por que deixar o conforto de sua vida atual e doar-se tanto para o trabalho com os grupos… Ela apenas responde que, se um dia ela foi ajudada por alguém, agora é hora de ajudar aos outros. E que é nessa ajuda que ela se realiza e se torna cada vez mais sã.

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Vítor trabalha em uma fábrica de parafusos. Não teve oportunidade de estudar muito – chegou apenas à metade do Ensino Fundamental. Ele trabalha oito horas por dia em pé, e tem apenas meia hora de almoço. Em sua casa alugada, ele mora com esposa e dois filhos pequenos.
Aos finais de semana, Vítor investe em um sonho que alimenta há muito tempo – montar uma biblioteca comunitária para atender as pessoas do lugar onde mora, um bairro essencialmente pobre da periferia de São Paulo. Para ele, os livros são garantia de que as crianças e jovens do bairro ganharão mais chances de desenvolver seu potencial e assim terão mais chances no mundo competitivo que os aguarda. Ele sabe que conhecimento significa liberdade.
Sozinho, ele busca patrocínio, pinta caixas de madeiras, bate nas casas para pedir doações de livros usados e batalha por um espaço para guardar os livros. Nunca conseguiu nenhum apoio do governo, mas continua tentando. Também é ele mesmo quem cuida de estimular as crianças e jovens a vir procurar, ler e aprender com os livros.
Já disseram a Vítor que o trabalho que ele faz é inútil, um grão de areia perto do mar. Mas ele diz que não se importa com o que vai faltar fazer, e sim com o que está fazendo. Por isso faz.

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Alice tem uma prótese na perna, devido a um problema congênito de má formação dos ossos. Perto dos 55 anos, com marido e filhos crescidos, ela tem dificuldade de se locomover, mas duas vezes por semana, pega um ônibus e vai ao hospital Emílio Ribas, em São Paulo, visitar doentes terminais, vítimas do HIV.
Além das visitas, ela faz um treinamento com psicólogos e capelões para atender melhor aos doentes e suas famílias. Ela passa horas conversando, cantando, lendo e ouvindo as histórias daquelas pessoas, tentando fazê-los entender que, embora a perspectiva de vida deles seja pequena em termos de tempo, ainda podem passar momentos felizes, ainda têm coisas a fazer por aqui e coisas a ensinar. Muitos deles são pessoas abandonadas por seus amigos e familiares, tendo nela e nos outros voluntários as únicas companhias enquanto agonizam no hospital. Muitas vezes, Alice acompanha essas pessoas até o dia de suas mortes.
Se perguntar a Alice por que, mesmo sendo deficiente e tendo muitas dificuldades, ela faz uma viagem tão longa para encarar a doída realidade de pessoas naquela situação, ela diz apenas que fazer esse trabalho alivia suas próprias dores, e que na verdade, é ela quem agradece todas as lições que aprendeu com aqueles doentes.

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Gilberto é um empresário bem sucedido. Em seu pequeno negócio – um restaurante – emprega pessoas, paga impostos e colabora para o crescimento econômico do país.
Como cidadão, ele passa parte de seu tempo alimentando pessoas de outra forma.
Às sextas-feiras, ele vai até o centro da cidade com sua perua e um grupo de amigos oferecer aos mendigos e moradores de rua da região um prato de sopa, gratuitamente.
É um trabalho que demanda tempo, dinheiro, e que submete Gilberto a um certo risco. Segundo ele, a fila dos famintos cresce cada vez mais, e recentemente, ele e os outros voluntários já foram assaltados duas vezes. Mas ele não desiste. Diz que, se não conseguir alimentar àquelas pessoas, não conseguirá alimentar a mais ninguém. Nem a si mesmo.

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Essas são pessoas comuns com as quais tenho a honra de conviver. Como elas, conheço muitas outras. Gente honesta, batalhadora, realmente idealista, que acredita nas outras pessoas e faz muito pelo Brasil, pelos brasileiros.
Elas não ganham malas de dinheiro. Não aparecem na televisão. Não fazem compras em butiques caras dirigidas por fúteis madames sonegadoras de impostos. Não são políticos, nem fazem barulho. Não pedem nada em troca do que fazem. Apenas acreditam numa missão, em um sonho de vida, vão atrás disso e fazem alguma diferença nesse mundo, tornando a vida dos outros um pouco melhor. Simplesmente isso.
Faz dias que tenho vontade de escrever e falar sobre esses calhordas, canalhas e nojentos políticos que governam o Brasil desde sempre. Mas pensei que eles não merecem nada além de justiça e desprezo.
Essas pessoas sim, merecem ser conhecidas e comentadas. Elas e a maioria dos brasileiros que, todos os dias, saem para trabalhar cedo, lutam o dia todo e seguem cumprindo suas obrigações de cidadãos. Os mesmos brasileiros que não sonegam, não roubam, não tiram nada de ninguém e têm boas intenções, apesar de serem roubados e diminuídos por ações corruptas todos os dias, a cada ato dos governantes.
Essas pessoas sim, merecem ser chamadas de brasileiros. O resto, é resto. E só.

Na minha casa, o resto, quando existe, vai sempre pro lixo, que é o lugar dos restos. Haja cestos para tamanha sujeira.

16 comentários sobre “O QUE REALMENTE IMPORTA

  1. Adorei, adorei, adorei. Nunca tinha pensado por essa perspectiva, K. Vc tem razão. Dão ibope demais pra esses caras fazendo CIRCO dessa história toda. Tinham que simplesmente aplicar a lei e pronto.

    Um bjo enorme, miga querida.

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  2. Parabéns pela iniciativa, Karina!

    O ‘circo’ acaba sempre conseguindo o que queria: ibope, manchetes, linhas e linhas sobre eles…

    Parabéns por escrever sobre gente igual a gente, gente que luta e não quer fama, só quer paz e um mundo mais justo!

    Beijinhos! Até semana que vem!

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  3. Mafaldinha. Adorei o seu texto. Sabe… eu sempre penso nisso. Como a televisão só explora o lado podre das coisas. Deveria também mostrar sempre exemplos como esses… para incentivar as pessoas e fazê-las refletir sobre o sentido da vida.

    Não consigo compreender como esses ladrões conseguem dormir… talvez consciência seja uma palavra q eles nem conheçam.

    Beijos, querida!

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  4. Venho pensando em tudo isso, Karina. Pq não conseguimos espaços na mídia para o bem ?

    Se os jornais (fossem no papel, na TV ou na Net) mostrassem mais o bem, terí­amos mais e mais gente voltada para as ações sociais que para a calhordice. Parece que expor o crime, só faz com que aprendam a fazê-lo ou a achar que é o normal. Até pq na maioria dos casos, expõe-se toda as coisas erradas mas, a punição para elas, parece que nunca chega !

    Lindo post !

    Beijos…

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  5. Esses são os Brasileiros que são de verdade Brasileiros.

    Nós, seres comuns, com problemas e tristezas, com falta de grana e filhos que correm perigo quando saem ás ruas pois não temos motoristas com carros blindados…

    isto é o Brasil e não esta M que estamos vendo..

    te beijo

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  6. Pena que não dê para passar som de aplausos pelo PC. Mesmo assim, receba maus calorosos cumprimentos por este post maravilhoso. Ele é real, chocante, cru… descaradamente verdadeiro e necessário. Adorei-o (assim como vários outros que vc escreve). 😉

    Beijão pra vc, minha querida. Parabéns mais uma vez. :-***********

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