O LAGO DA MEMÓRIA

No tempo em que eu acompanhava novelas, me lembro de achar muito interessante os momentos em que os personagens ficavam sozinhos. Fatalmente, eram acometidos por cenas de capítulos anteriores. Lembravam-se de diálogos, de pessoas, de cenas importantes. Algumas produções traziam as memórias em preto-e-branco, em imagem desfocada, ou com eco. Mas, fossem como fossem, eram lembranças tão perfeitas quanto um videotape, recuperações exatas do que tinha acontecido. E apareciam somente quando eram chamadas, em momentos cuidadosamente selecionados, para relembrar ou impulsionar a trama. O personagem lembrador sempre fechava os olhos, como se, para olhar para dentro, precisasse esquecer o que havia ao seu redor.

Comigo é diferente do que acontece nas novelas. As lembranças aparecem nos momentos mais inesperados, e vêm de diversas maneiras. O tempo todo minha mente faz links entre presente e passado. Uma coisa puxa a outra, que puxa mais uma, e mais outra, e pronto – estou imersa até a cabeça no rio da memória, tentando me mover na imensidão da água, inevitavelmente tocada e levada pela correnteza. E sigo nadando, mergulhando, aflita, tentando encontrar um anel perdido no rio, no escuro. Um som, uma sensação, um cheiro, uma palavra, uma imagem… Um sentimento. A lembrança tem muitas caras, muitos jeitos. Mas quase nunca são perfeitas.

“Dicén que la distancia es el olvido“, é o que dizia o antigo bolero. E, embora eu saiba que o inconsciente é um buraco-negro onde tudo está caoticamente registrado, eu até concordo com essa idéia. A distância e o tempo vão apagando a memória, como uma fita de vídeo que vai envelhecendo; a imagem vai ficando imperfeita, depois borrada, depois cortada, até sumir de vez. E jogamos a fita fora. Ficamos só com a impressão, só com o sentimento, só com a vaga idéia de que um dia vimos aquela cena, embora a emoção que ela nos causou ainda permaneça. Como era mesmo o rosto do meu avô? Qual era mesmo a cor dos olhos do meu primeiro namorado? Como era o nome daquele poema, aquele, que tantas vezes recitei em silêncio? Como começava aquela música? O que foi mesmo que a minha professora me disse naquela ocasião? Como foi que tudo começou? Qual foi a última vez que aconteceu?

“Sinto que é como sonhar… Que o esforço pra lembrar é vontade de esquecer“, é o que dizia aquela outra canção. Os sonhos são assim. Tente lembrá-los, e eles desaparecerão em segundos, como memórias proibidas. Embora sonhos sejam desejos e imagens mnemônicas, por alguma razão, nossos mecanismos querem apagá-los, para que possamos seguir em frente. E com o tempo, todas as memórias vão virando sonhos. E dá um medo muito grande de esquecer aquilo que quero lembrar pra sempre. Fico tentando reviver na memória momentos felizes, frases, toques, acontecimentos agradáveis que me trazem alento, fico tentando passar o filme de novo e de novo, para que ele nunca deixe de ser como é. Tenho medo de perder o meu passado, de que a minha vida, e seus grandes momentos, e as pessoas que amei, fiquem como um quadro na parede, lá longe, desgastado, que, mesmo ohando, não consigo mais identificar a imagem com precisão. Por isso, quando a imagem me é muito cara, tento retocá-la, restaurá-la, lembrá-la sempre, para que não se perca. Nessa tentativa, não escapo de acrescentar um detalhe ou outro, de enfeitar, de deixar mais bonito aquilo que antes era uma simples lembrança; com o tempo, ela também já não é mais o que é. De um jeito ou de outro, as lembranças originais se perdem.

“Tudo que morre, fica vivo na lembrança… Como é difícil viver carregando um cemitério na cabeça…” – é o que dizia a outra música. Algumas lembranças eu gostaria muito de apagar. Momentos ruins, bobagens que fiz ou disse, coisas que machucaram, que fugiram ao controle. Mas essas, essas insistem em vir, e vir de novo, e vir outra vez. Quando estou só, essas memórias insistem em me perturbar. Ainda que imperfeitas, como fantasmas, elas ficam batendo no sótão da minha cabeça, fazendo barulho, arrastando correntes, querendo sair, querendo se materializar. E eu penso que melhor seria esquecer. O esquecimento pode ser uma libertação, um desligamento da agonia de saber. O personagem de “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” achava que, se conseguisse apagar da memória seu grande amor perdido, não estaria mais preso a ela. Os laços que os uniram se desatariam magicamente se as lembranças se fossem. Se a pessoa não existe mais ali, alimentando o futuro, também não precisa existir mais dentro, relembrando de maneira torturante o passado. Mas tudo que ele consegue com sua débil tentativa de apagá-la é deixá-la ainda mais presente em sua vida.

E assim, contraditórias e intensas, são as lembranças; assim, poderosa e impiedosa, é a memória. Não resistem ao tempo, mas dele se alimentam, nele se formam, com ele se unem, contra ou a favor de nós.

Mnemósine, deusa da memória, é uma titã, filha de Urano e de Gaia – o Céu e a Terra, respectivamente. Mnemósine também é irmã de Cronos, o Tempo; teve com um de seus filhos – Zeus, o maior de todos os deuses – nove filhas, denominadas musas. As musas são excelentes cantoras, e fazem um coro perfeito e harmônico, do qual sua mãe, a Memória, é regente e parte integrante. As filhas da memória tinham a função de presidir as diversas formas do pensamento – a razão, a matemática, a astronomia, a eloquência, a história, a persuasão… A sabedoria. Assim, nos conta a mitologia grega que a Memória é filha do Céu e da Terra, irmã do Tempo, esposa da Divindade e mãe do Conhecimento. Mnemósine também sabia reger doce e eficientemente suas filhas, porque era, ela mesma, a poesia da vida – aquela que tudo sabe, sobre o que foi, o que é e o que virá.

E é assim que a vida se constrói. Sem a memória, seríamos eternos iniciantes, sem construir o conhecimento e a poesia que nos leva ao futuro. Boas ou ruins, as lembranças são nossa história, elas nos têm, e temos a elas. É por isso que não quero me esquecer de nada, nada que houve comigo. Creio firmemente que minhas lembranças são minha saúde, meu tesouro, aquilo que me mantém conectada, ao mesmo tempo, comigo mesma e com o meu redor. São as lembranças que me tornarão viva quando eu morrer… E que fazem vivos em mim aqueles que se foram, sejam pessoas ou momentos. Esquecer pode não ser fácil, mas é ruim. Lembrar também é difícil, mas é mais puro e amoroso, como dizia aquela outra canção:

“Do lado do cipreste branco,
À esquerda da entrada do Inferno,
Está a fonte do esquecimento.
Vou mais além, não bebo dessa água.

Chego ao lago da Memória,
Que tem água pura e fresca.
Digo aos guardiões da entrada:
Sou filho da Terra e do Céu…

Dai-me de beber, que tenho uma sede sem fim…

Olhe nos meus olhos:
Sou um homem-tocha

Me tira essa vergonha,
Me liberta dessa culpa,
Me arranca esse ódio,
Me livra desse medo.

Olhe nos meus olhos –
Sou um homem-tocha…

E esta é uma canção de amor.”

Sim, a água que quero é a água da memória. E mesmo que não quisesse, seria a única que poderia beber. Mesmo imperfeitas, mesmo novelísticas ou alteradas, quero minhas lembranças comigo. Porque sei que, na peneira da alma, só se lembra o que é importante… O que é fundamento. O resto, passa… São lembranças que o vento leva como grãos de areia, e nunca mais veremos.

“Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas –
essas, ficarão.”

Carlos Drummond de Andrade

19 comentários sobre “O LAGO DA MEMÓRIA

  1. Adoro você assim, tão metafísica, tão psicóloga, tão meu número. :))))
    Quem não lembra não tem história, e achei seu texto triste, mas mto corajoso, como é esse seu momento.
    E adorei tb as referências. Só faltou aquele texto do Freud, que fala sobre lembranças encobridoras… ( Desculpa, eu não resisto. *rs ).
    Bjo, continuo aqui pro que vc precisar.

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  2. Seu texto continua maravilhoso. Eu não posso deixar de pensar que o que sou é esse conjunto de lembranças. Meu passado segue passo-a-passo ao meu lado, as lembranças são aquilo que me fazem viva. Não que rejeite o presente, mas a história do que fui, do que vivi, é o que me faz ser o que sou. Impossível abrir mão delas, por mais dolorosas que tenham sido.
    Beijos

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  3. Belo post menina, mas será que o problema e se apegar ao passado e não viver o presente?

    E você está melhor?

    Sei que estou sendo inxerido, por isso peço desculpa, mas para qualquer coisa, pode mandar um e0mail para mim…

    Fique com Deus, menina Karina.
    Um abraço.

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  4. Post lindo como sempre e com duas referências artísticas muito fortes para mim: o filme e o poema de Drummond.
    Mas gosteeeei muito da parte em que vc fala “Ficamos só com a impressão, só com o sentimento, só com a vaga idéia de que um dia vimos aquela cena, embora a emoção que ela nos causou ainda permaneça.” Perdi meu pai há quase 20 anos, e é incrivel como apesar de tão poucas lembranças, as emoções são tão fortes!
    um beijo grande

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  5. Olá, minha flor.
    Sabia, eu tinha certeza que você escreveria algo desde que falamos ao telefone… Entendi que, embora seu momento esteja triste, está muito inspirado também.
    Era minha avó, tão especial quanto a sua, quem dizia, esquecer é para os fracos. E você é tão forte, Karina… Não poderia ser outra a sua opção.
    Muito lindo e profundo seu texto.
    Aceite meu convite, por favor… Adoraria revê-la, os momentos com você sempre são dignos de serem lembrados, acho que você anda precisando se permitir divertir-se um pouco e fabricar novas e felizes lembranças.
    Boa sorte ao tentar se entender com a sua memória.
    Beijo e abraço apertado do amigo que te adora, e torce por você todos os dias.

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  6. Karina, tomei a liberdade de enviar seu texto por e-mail (creditado, obviamente) aos meus colegas do mestrado em Cultura e Turismo. Estamos estudando Memória e Identidade, e seu texto é uma síntese (empírica) do que lemos em Bosi, Pollak, Nora e Le Goff semana passada.

    Obrigada por me provar que a teoria é plenamente sensível e experienciável. 😉

    Beijo carinhoso,

    Bel

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  7. Ahh.. querida Karina… enfim realmente parei pra fazer aquilo que devia e queria fazer a muito tempo: comentar no seu blog.
    Ja faz muito tempo que o descobri.. como que por acaso.. enquanto fazia pesquisas na net… pesquisando textos.. poemas… citaçoes que me definiam em palavras que nao eram minhas. Ainda me lembro do texto especifico que me trouxe ao seu blog: “Juras de Amor” – Maio de 2005. Fiquei encantada com a sua maenira de escrever… com o que vc conseguia descrever… Fiquei encantada com o seu olhar sobre o Cotidiano: Simples mas Complexo. Era tao parecido cmg… com tudo que eu sentia.
    Costumo dizer que amo ler, pq ler eh como ter um dialog silencioso, onde vc sabe que alguem, em algum lugar te entende, pq sente ou ja sentiu o mesmo que vc.
    É exatamente por isso que estou te escrevendo. Para que vc saiba que há uma pessoa, que ainda que vc desconheça, acha extremamente significativo tudo que vc escreve! Que passou a conhecer um pouquinho de vc,,, se emocionar com vc… e se entristecer com vc..
    Queria ter achado palavras pra te dar força qd vc tanto precisava… E em pensamento eu o fiz.
    As vezes imagino podendo conversar com vc! Pra fazer longos comentarios sobre tantos textos… tantas coisas…
    Eu tambem ‘cultivo’ um blog… Mais disceto… Apenas para amigos…. Mas onde, assim como vc, muitas vezes escrevo pra mim mesma, pra por meus pensamentos em ordens, pra colocar pra fora as emoçoes. E tambem tenho um caderno, onde escrevo aquilo que nao quero por no blog… e uma agenda, um verdadeiro diario de bordo.
    Acho impressionante como as vezes escrevemos sobre as mesmas coisas! Citamos de maneira parecida. Fico emocionada.
    E me sinto orgulhosa por conhecer e acompanhar o seu espaço. Me senti mt feliz por estar entre os ‘raros’ (como diria o Fernando Aniteli do Teatro Magico – que fiquei super feliz qd vc descobriu!) que sabiam a fonte, por exemplo, do texto “Criando um Monstro”, que, por sinal, eu havia lido no dia em que vc postou.
    Nao posso continuar a escrever, se nao nao haverá espaço pra tantos caracteres…
    Mas o seu texto de hoje eh sem duvida maravilhoso!
    E faz tanto sentido pra mim… Ja havia postado essa musica da Legiao há um tempo… e assim que vi o titulo lembrei dela…
    A maneira que vc sitou brilho eterno de uma mente sem lembraças…
    E fico feliz de ver que assim como eu, vc sabe que as lembraças mts vezes fazem a gente sofrer… mas a vida nao seria nada sem elas…

    Bjo querida karina. (ou como eu e minha mae costumamos nos referir a vc, querida Mafalda)

    ps: sei qeu vc recebe mts comentarios.. e possivelmente nao vai responde-los todos…
    mas… vc vai ter meu email, ne?!

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  8. Oi querida!

    Adorei seu blog, sua forma de pensar e ver as coisas…parece comigo em muitas coisas.

    Adicionei o seu blog ao meu para leitura.

    Quando puder e se assim desejar me faça uma visita…=)

    Um grande beijo, uma bela noite e um bom fim de semana!

    Alessa
    *Closer

    dia-de-alessa.blogspot.com

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  9. Sua explanação é ideal, pois resgata, fala a respeito do caos que acerca o momento presente e finaliza com esperança. “E o que resta sem sentido. Fico perdido, sem direção. Fico danado e nado o que for preciso. Em busca de um porto pro meu coração… ” TM Que não nos falte força pra lutar!!!! beijos querida!!!!!!

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  10. Me Leve (Cantiga Para Não Morrer)
    Fagner
    Composição: Indisponível

    Quando Você for-se embora
    Moça branca como a neve
    Me leve, me leve

    Se acaso você não possa
    Me carregar pela mão
    Menina branca de neve
    Me leve no coração

    Se no coração não possa por acaso me levar
    Moça de sonho e de neve
    Me leve no seu lembrar

    E se aí também não possa
    Por tanta coisa que leve
    Já viva em seu pensamento
    Moça branca como a neve
    Me leve no esquecimento

    Li seu texto e lembrei essa canção…
    Um abraço.

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  11. Moça é tão bom quqndo ainda ainda acredita em papai noel. coelho d pascoa, Deus. A cia tão a´rida quendoa realidade te mostra que nada disto existe. Que nascer e morrer az parte do ciclo da vida. Que não ter mão, pai, cachrro e e enm filhos fazem oarte da maioria das pessoas. Que quem um dia amou alguem foi agraciado. Que as pessoas deviam ir mais aos hospitais psiquatricos para ver como os seres humanos são tratados. Que no Brasil a gente poderia quando querer morrer. Que viver de alegria quimica é uma coisa muito ruim. Que o pasaporte para matarque os medicos tem deveria icluir dar uma injeção e morfina para que a dor termine.

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  12. Oioi, acompanho seu blog a um tempo e tenho que dizer que simplismente adoro seus textos! recentemente eu criei um blog, é um blog voltado para quem vai fazer vestibular e nossas rotinas, eu acho que não a maioria, mas algumas meninas que lem seu blog vão prestar vestibular (seus textos contribuem mt para nosso conhecimento, pelo menos para o meu contribui bastante!) por isso eu queria te pedir pra que, se você puder vc divulgue meu blog em um dos seus posts, o link é: http://www.vidadevestibulanda.zip.net,
    obrigada desde já!

    beijão!

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  13. Querida Karina…

    Faz tempo que aqui não escrevo, embora nos poucos momentos que tenho livre sempre clico em Favoritos pra ler seus escritos…
    Mais um texto brilhante…
    Amei a forma como você encadeou sentimentos, conhecimentos sobre mitologia e canções (que tantas vezes expressam aquilo que sentimos e não encontramos com facilidade palavras pra dizer)…
    E é tão bom que alguns iluminados, como você, tenham essa familiaridade com as palavras…
    Amiga do coração… Sinto saudades… E ler seus escritos é um jeito que encontro de continuar aprendendo contigo, mesmo não trabalhando mais juntas…
    Beijo grande…

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  14. Parabéns….você me encanta com a forma como se expressa….quem me dera ter o dom de escrever assim…
    Te admiro e quero que você tenha força para vencer todos desafios que te foram impostos….
    Obrigada por compartilhar o teu dom…sucesso sempre!

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