PEQUENOS FILÓSOFOS

“K” sou eu, Karina, a professora de crianças de primeiro estágio ( 3, 4 anos ) de uma escola pública na periferia de São Paulo. São 35 pequenos de manhã, mais 35 pequenos à tarde. “A” são outros adultos envolvidos na conversa.
“C” são eles. Crianças lindas, fofas e danadas que convivem comigo todos os dias e do alto de seus pouco mais de 50 centímetros de altura me derretem e me ensinam coisas sobre a vida.

“C – Ei, Karina, me diz uma coisa, esses livros, esses papéis, esses brinquedos, essas coisas todas que tem no mundo, pra que serve tudo isso?
K – Ah, sei lá, cada coisa serve pra uma coisa em uma hora, entende? Por exemplo, os livros servem pra ler quando a gente quer aprender ou se divertir, os brinquedos servem pra brincar, as cortinas servem pra bloquear o sol, e assim por diante, cada coisa serve pra uma coisa.
C – Tem coisas demais no mundo…
K – Sim, também acho, concordo com você.
C – E as coisas que não servem pra nada?
K – Essas, a gente joga fora ou guarda.
C – Que coisa triste, uma coisa ser feita pra servir pra alguma coisa e depois não servir mais pra nada…”

“C – Você foi na casa da sua vó?
K – Minha vó já morreu, ela não mora mais aqui no mundo.
C – Por que ela morreu?
K – A vida é assim mesmo, a gente nasce, vai ficando grande, vive um monte de dias, depois vai ficando bem velhinho e morre. MInha vó morreu bem velhinha… Ela ficou doente e morreu.
C – E se eu ficar velha?
K – Você vai ficar, todo mundo fica.
C – Eu não vou querer ficar velha.
K – Não tem querer, todo mundo fica. Eu já estou ficando. Mas você vai demorar ainda um mooooooooonte de tempo pra ficar velha.
C – Muito tempo?
K – Muito tempo… Mais de muitos mil dias.
C – ( Depois de um silêncio pensativo… ) Acho que eu sei porque as pessoas velhas morrem, só de pensar em tantos mil dias eu já fiquei tão cansada…”

“C – ( Com uma cara amarrada, me estendendo um pacote de presente ) Toma, Karina, minha mãe mandou esse presente pra você.
K – Ai, que legal! ( Depois de abrir, tentando demonstrar empolgação ) Um pano de prato, que lindo!
C – ( Bravo ) Lindo nada. Não era isso que eu queria dar.
K – Eu fiquei contente, mas me diz, o que você queria me dar?
C – Eu disse pra minha mãe, mãe, a Karina gosta mesmo é de música e de livro.
K – Eu adoro ganhar livros, mas também preciso de pano de prato. Afinal, eu cozinho na minha casa.
C – ( Admirado ) Cozinha??? Ué, mas então que hora você lê?!?!?!
K – Dá pra ler e cozinhar, oras.
C – E eu que achei que quem cozinha só cozinha, e quem lê só lê…”

“K – Sofia, esse nome é perfeito pra você.
C – Por quê?
K – Porque Sofia significa conhecimento, é nome de gente inteligente, e você é inteligentíssima!
C – ( Com cara de decepção ) É… É bom chamar Sofia, mas já que é assim, eu queria mesmo me chamar Bela.”

” ( Dois pitocos apavorados na frente da minha mesa ).
C1 – Karina, ele quer namorar comigo!
C2 – Eu quero, ué, você é bonita!
K – Bem, vocês sabem, vocês são crianças, só podem namorar de mentirinha, e o senhor, mocinho, só vai namorar de mentirinha com ela se ela quiser, que ninguém pode namorar com outro sem o outro querer.
C2 – Como assim, de mentirinha?
K – Namorar de mentirinha, ué, pegar na mão, brincar junto, fazer carinho, mas não pode namorar igual gente grande.
C1 – E como é namoro de gente grande?
K – Ah… Vocês sabem, é diferente. Tem beijo na boca, as pessoas grandes saem de casa juntas sozinhas, e passeiam…
C2 – Você já beijou na boca de verdade?
K – Já.
C1 para C2 – Claro que já, né, e você sabe, gente grande também namora pelado.
C2 – Eca! Mas Karina, como que é quando beija na boca?
K – ( Já constrangida com o rumo da prosa ) Ah, é legal, um encosta a boca na boca do outro e fica ali, beijando, e dá friozinho na barriga.
C1 para C2 – Que coisa nojenta, né?
C2 – Eca! Deixa pra lá esse negócio de namorar, vamos brincar de pega-pega.”

” ( Observando uma prancha com a pintura da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci )
C – Karina, não gostei dessa pintura não!
K – Eu gosto. Ela se chama Mona Lisa, é a pintura mais famosa do mundo, muita gente gosta dela.
C – ( Olhando fixamente pra imagem ) Eu, hein!
K – Por que você não gostou?
C – Olha bem o jeito dela, ela é daquele tipo de gente.
K – Que tipo de gente?
C – Gente que sabe tudo de você, mas você não sabe nada dela.
K – Hum, sei… Algumas pessoas dizem que quando a pessoa é assim, é porque ela é misteriosa…
C – Ela não é misteriosa, não! Ela dá medo mesmo!
K – Por isso ela é uma grande obra de arte, porque dá essa sensação que mexe com as pessoas.
C – ( Com desprezo ) Por mim, pode jogar fora, aff, que mulher esquisita!”

“K – Vem cá, Laís, vamos escrever seu nome.
C – Pra quê?
K – Ué, vou te ensinar porque é legal você escrever seu nome.
C – Pra quê?
K – Pra colocar nas suas coisas, escrever nos seus desenhos. O que tem o seu nome é só seu, não é legal isso? Todo mundo sabe que é da Laís, e de ninguém mais.
C – Não acho legal, eles podem pegar minhas coisas, eu pego as coisas deles, não tem problema.
K – Mas é legal você saber escrever.
C – Você não sabe escrever Laís?
K – Sei, mas é legal VOCÊ saber.
C – Se você sabe escrever meu nome e escreve num instante, pra que eu preciso escrever? Escreve você, é mais rápido.
K – Mas é importante VOCÊ saber escrever seu nome, carambola.
C – Eu sou muito pequena pra isso.
K – É nada, um monte dos seus amigos são pequenos e escrevem também, e não precisam mais de mim pra escrever.
C – Então eles escrevem, e depois o que estiver sem nome é meu.
K – Escuta aqui, chega de conversa, senta aqui e vamos escrever seu nome porque sim. Pronto.
C – ( Sentando brava. Pega no lápis e olha pra mim, dando uma risada irônica. ) Eu escrevo, mas eu peguei você.
K – Pegou nada.
C – Peguei sim, porque quando você diz porque sim, é porque não tem mais resposta. E eu ganhei.”

” ( Meia hora depois da saída, criança continua na escola, ninguém veio buscar. Nenhum telefone dos pais atende, tentamos achar um vizinho da mesma rua, mas o endereço é antigo. )
K – Andi, onde você mora?
C – Eu moro naquela rua ali. ( Aponta na direção de um cruzamento. )
K – Na rua de cima ou na rua de baixo?
C – ( Aponta de novo ) Naquela rua ali.
A – Mas é na rua que é reta ou na rua que sobe e desce?
C – Caramba, é aquela rua lá!
K – Andi, presta atenção, a minha rua, sobe e desce.
A – A minha rua também sobe e desce, não é reta.
K – E a sua rua, sobe e desce, Andi?
C – ( Com ar de quem precisa escapar de duas loucas ) A minha rua não sobe e desce não! A minha rua fica parada! AFF!”

“C – Não gosto de ver você triste.
K – Quem disse que eu tô triste?
C – Tô vendo, oras. Tá triste e cansada.
K – Ah, deixa eu, a gente não pode estar todo dia alegre. Vai brincar você, vai ser feliz, deixa eu aqui quieta que daqui a pouco a gente sai do parque e você nem aproveitou.
C – ( Senta no meu colo ) Por que você tá triste?
K – Tô com saudade de uma pessoa.
C – Ah, chama ele pra comer pizza na sua casa.
K – Não dá pra fazer isso, tem vez que a gente sabe que nunca mais vai matar a saudade, porque a pessoa não vai voltar, e é por isso que a gente fica triste.
C – Tive uma idéia.
K – Qual?
C – Pega a sua caneta e escreve uma carta, minha mãe faz isso quando tá com saudade da minha vó que mora na Bahia.
K – Não sei se escrever uma carta vai me deixar mais feliz, mas obrigada pela idéia.
C – Vai sim, eu já reparei. Toda vez que você escreve, você ri.”

Sou feliz por eles fazerem parte da minha vida… Meus pequenos filósofos fazem valer a pena viver em um mundo com adultos de tanta filosofia pequena.

14 comentários sobre “PEQUENOS FILÓSOFOS

  1. Hua, kkk, ha, ha, crianças são pequenos universos, mas ao contrario de nós, são sempre tão energeticos…

    Só uma pergunta, se você colocou as letras para “ocultar” os nomes das pessoas, por que você colocou o nome da criança durante a conversa com ela (e bem espertinha que acabou te pegando).

    Que bom que você voltou, estava sentido falta de ti…

    Está melhor menina (pela conversa com os teus tesouros sim)?

    Fique com Deus, menina Karina.
    Um abraço.

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  2. Lindo demais!!!!!
    Conviver com esses pequenos anjos, não tem preço!!!!
    Certas coisas o ser humano não deveria mudar nunca…
    É uma pena muitos corações não crescerem na medida que seus corpos esticam.
    O corpo estica, e o coração encolhe… muitas vezes até desaparece…
    Mas não sejamos tão radicais, né? Nem todo mundo é assim… UFA!!!!!!

    Beijos querida!!!!

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  3. Oi, Karina,

    Que delícia seus relatos!
    Compartilho, com força e alegria, esse seu encantamento com os “pequerruchos”!
    Também trabalho com crianças de 2 e 3 anos e é uma delícia! Com certeza sou uma pessoa melhor e mais feliz depois que eles entraram na minha vida.

    Abraço carinhoso pra vc…

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  4. Bom d+ abrir seu blog e encontrar texto novo, principalmente um como esse cheio de leveza e simplicidade infantil… Pena não continuarmos com esses pensamentos tão simples e ao mesmo tempo tão profundos… Bom mesmo é ser feliz e isso a gente pode em qualquer idade, né?

    Bjão.

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  5. Encantador!
    Acho que você sabe que não é todo mundo que sabe escutar as crianças… Por isso elas não dizem essas coisas pra qualquer pessoa. Elas confiam em você… É um dom que você tem.
    Estou morrendo de saudades… Muito mesmo, e estou resolvendo minha vida pra você poder considerar me contar coisas como essas todos os dias, partilhando seu dia-a-dia comigo.
    Beijo, e continue escrevendo!

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  6. D – E – L – Í – C – I – A de papos, não é, amiga? É por isso que não troco meu trabalho na Educação Infantil por nada deste mundo…
    Muito bom ‘te ler’ de novo…
    Saudades de montão. Bjs

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  7. Kari… Ameeei! Abri seu blog, tipo, so pra conferir, nem achei que ia ter coisa nova. Mas como me surpreendi! Viajei lendo os dialogos! As crianças sao mesmo fantasticas! E elas te conhecem direitinho, ne?!
    Concordo, escrever te faz bem. Te ler me faz um bem maior ainda!

    Ah.. agora na semana pós-quimio ja to melhor! Enjoadinha´[como estarei quase sempre], mas de volta a rotina e a facul.

    Bjinhos =***

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  8. Conta mais… Sei que teria mtos diálogos como esses pra escrever. São deliciosos de ler.
    Sua presença é inspiradora… Por isso eles dizem tantas coisas lindas. Vc os estimula, os acolhe. Devia recolher essas falas com mais rigor e publica-las, inspiraria mtas profas que não entendem o qto é importante ouvir as crianças com sensibilidade e atenção.
    Acho que vc provoca esse efeito em mtos grandões tb… Eu me sinto assim, inspirado por vc sempre, vc sabe.
    Por isso em outubro vou dar um pulo no Rio, e passo aí com certeza pra curtir um pouco mais de vc, minha sempre doce e queridíssima e amada e sábia e meiga amiga. :*******
    E, please, não demore tto tempo pra postar… A gente fica carente de seus textos.

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  9. Adoro o que você escreve, e adoro como você escreve!
    Mesmo sem te conhecer, fico feliz em poder acompanhar essa nova fase de sua vida. E desejo que você possa desfrutar desses pequenos momentos felizes do cotidiano todos os dias.

    Abraços desta outra Mafalda!

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  10. Ótimo! 😀 Não é à toa que dizem que as crianças são os melhores professores. Possuem a sabedoria do simples, a essência do segredo da felicidade. 🙂
    Muito obrigado por nos trazer este post, alegrou meu dia! 😀
    continue assim, ensinando e aprendendo com estes pequenos grandes sábios 🙂

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