Se você é “moreninha” ou “queimadinha” como eu, deve ter se perguntado muitas vezes, ainda que inconscientemente, por que tinha que ter como filha uma bonequinha loirinha de olhos azuis quando criança, ou por que o lápis “cor de pele” é roseado se a pele de uma pessoa pode ser de tantas cores, ou por que na televisão e nas revistas tem pouca gente negra, ou por que as pessoas têm medo de dizer “negro” e ficam arrumando apelidinhos para se referir ao tom de pele escuro. Talvez você, se for “bem morena” como eu, tenha antepassados africanos e indígenas em sua família, mas, como a esmagadora maioria dos brasileiros, carregue apenas sobrenomes de origem européia. E talvez você não tenha se dado conta, se for “escurinho” como eu, que teve, a vida toda, que ouvir coisas como “ela é preta mas é super honesta”, “futebol e samba é coisa de negão”, “você está denegrindo a minha imagem”, ou “só podia ser preto mesmo”. E talvez você não tenha reparado, mas nos seus livros da escola os desenhos de pessoas eram sempre de pessoas brancas, as histórias contadas sempre eram as da cultura européia, a Geografia e a História quase nunca passaram pela África, e as contribuições dos africanos e índios para a cultura brasileira mal passaram de notas de rodapé ou meras menções nas aulas oficiais. E se foi assim com você, talvez no espelho você não queira muito ver como a sua pele “moreninha” é linda só por ser como é.
Se você é “mulherzinha” como eu, deve ter se perguntado muitas vezes por que o jeito racional e prático dos homens parece sempre tão melhor do que o seu jeito sentimental e intuitivo de ver o mundo, ou por que você tinha que ser sempre tão comportada e se conter pra não parecer vulgar e oferecida, ou por que você deve aceitar ser tratada como um pedaço de carne rebolante quando anda na rua com uma roupa mais decotada ou mais justinha, ou por que você deve gostar de coisinhas rosas e delicadas mesmo que elas não te agradem, ou por que deve achar graça de piadinhas que ouve no trânsito sobre sua capacidade de dirigir quando comete erros que qualquer homem cometeria. Pode ser que você, por ser mulher, muitas vezes tenha aceitado o controle dos homens sobre seu dinheiro, seu comportamento ou suas vontades, não por consenso, mas por obrigação, e muitas vezes tenha usado seu poder de sedução para conseguir o que não conseguiu por meio da discussão de idéias. Talvez você se pergunte por que as mulheres, para serem vencedoras em funções tradicionalmente masculinas, tenham que negar seus traços femininos, e tenham que batalhar o dobro para conseguir a metade. Talvez tenham te ensinado que não é bom questionar por que você tinha que lavar mais louça e esperar ser cortejada, ou tenham te ensinado que mulher direita não deve gostar muito de sexo pra não parecer vagabunda, e que precisa aceitar traição de homem porque “eles são assim mesmo”. Sendo “mulherzinha” como eu, pode ter muitas vezes reparado que homens ganham mais, são mais valorizados e estão comandando quase todas as instâncias de poder que controlam a vida das pessoas todos os dias. E sendo assim, no espelho, talvez não consiga ver beleza no seu jeito feminino e diferente de ser.
Se você é “remediada” como eu, pode ser que seus pais tenham se matado pra te dar o mínimo de educação de qualidade e condições pra você escolher seus caminhos, mas, na sua vida de “classe média”, você tenha sentido que certos lugares, roupas e sonhos não eram permitidos pra você, ou que na universidade pública você era uma minoria desclassificada, que o seu carro popular não merecia um lugar tão decente no estacionamento quanto aquele outro importado, ou que suas escolhas de diversão, cultura, viagem, moradia, estudo, trabalho e até afetividade sempre estiveram limitadas por quanto o seu dinheiro pode ou não pode comprar, e ao se olhar no espelho… Se ache menor do que realmente é.
Se você é “fofinha” como eu, deve achar estranho ver muita gente como você na rua, mas pouquíssima gente como você na televisão e no cinema, a não ser pra fazer papel de palhaço. E se é “cheinha”, deve ficar se perguntando por que é frequentemente pisoteada pela mídia, por que as pessoas parecem ter raiva quando você opta por gostar de você como é, não fazer sempre dieta e não se proibir de dançar, namorar, transar de luz acesa ou usar biquini na praia, ou talvez se sinta agredida quando os médicos tratam uma característica do seu corpo como puro desleixo, te tratando aos pontapés. Talvez você não entenda por que tanta gente estranha quando você aparece namorando um homem lindo e inteligente, afinal de contas, se ele é assim, tão lindo, poderia estar com qualquer outra mulher mais dentro dos padrões, e não com você, que não o merece. E você, ao se olhar no espelho, talvez ache que não deva ver beleza nenhuma, sem entender que a beleza está muito mais no que se faz mistério do que no que se faz revelado.
E se você for oriental, homossexual, feio, deficiente, nordestino, imigrante, pobre, velho, adolescente, se tiver uma religião, uma profissão, um gosto, uma opinião, um jeito de ser ou de viver diferente da maioria ou do que nos ensinaram ser aceitável, talvez tenha muitas coisas mais pra contar ou pra reparar quando se olha no espelho. Afinal de contas, as pessoas gostam de encaixes e padrões inatingíveis, e costumam humilhar, diminuir, decepar e desprezar aquilo que você tem de melhor, e que faz você ser quem é de verdade.
Preconceito é um atraso que se renova todos os dias muito mais na sutileza das idéias do que na força das ações. Por isso é tão importante que o seu espelho mostre exatamente quem você é, sem esconder nenhuma parte. E mais importante ainda é que você goste muito e tenha orgulho do que vê lá.
“Se o mundo é um lixo, eu não sou…”
“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.”
( Caetano Veloso )
ATUALIZAÇÃO – 28/10 – Falando em opressão, preconceito, atraso e estupidez humana, leia no Boteco Sujo o texto Polanskis do ABC, especialmente os comentários. É de virar o estômago de nojo, indignação e impotência. Dica do Inagaki.