A FALTA QUE FAZ UM PAI

Meu pai morreu quando eu tinha 18 anos. Antes disso, ele já tinha morrido um pouco pra mim quando saiu da minha casa e sumiu quase que completamente, antes que eu fizesse 15 anos. E antes disso, nós íamos vendo ele se matar aos poucos, e morrer um pouco pra nós todos os dias, por causa de um alcoolismo grave e pesado, desde que eu era pequena; uma doença crônica e que, hoje vejo, não era só dele, mas era nossa também. A morte do meu pai foi lentíssima e muito, muito dolorida. Para ele e para nós, filhos e esposa. E essa dor não tem como ser relatada ou explicada, nem justificada. Quem cresce no centro de uma família doente, entende justamente o que é isso, o que é essa luta pela sobrevivência emocional; quem não, não entenderia nunca, nem com todas as palavras do mundo ( e me arrisco a dizer que, por isso, essas pessoas deveriam agradecer todos os dias ).

Por muito tempo eu tive que trabalhar duro pra lidar com essa morte de pai, porque essas duas coisas, morte e pai, eram as mais difíceis de entender pra mim; conceitos complexos que me faziam uma pessoa complexa e defendida. Foram alguns anos de terapia, muitas leituras, conversas com pessoas, conversas com Deus, observação do comportamento humano, um curso de Psicologia, reuniões sofridas de Al-Anon, reestruturação da minha família e muita, muita conversa comigo mesma e com ele. Aos poucos, aprendi a compreender essa história de que as pessoas não são perfeitas. Aprendi também a dar a cada um o seu pedaço de culpa e de sucesso dentro de uma história de amor entre pessoas, sejam elas pais e filhos, irmãos, amigos ou amantes. Aprendi a recuperar minha auto-estima, tão esmagada, colei-a de novo, pedaço por pedaço. Aprendi também a buscar essa figura paterna aos pedaços, nos meus tios, no meu avô, nos meus irmãos, e até no meu próprio pai, lembrando dos nossos bons momentos – e eles existiram, e foram muitos. Fui criada por mulheres fortes que não pareciam precisar de homens para nada, e foi difícil, está sendo ainda, me achar como mulher em relacionamento com homens sem ser como elas. Foi difícil lutar contra o impulso egoísta de achar que eu poderia ter um filho sem dar a ele um pai, sem dar a ele uma família, como se eu fosse auto-suficiente. Foi difícil aprender a dizer a palavra PAI, perdoá-lo, e hoje, tantos anos depois, estar aqui, nesta data, sentindo falta de ter um pai… Sentindo falta do MEU pai. Difícil, mas eu nunca desisti, e não desistirei. Por mim, e por ele. Ele, que foi quem mais me ensinou a fazer flores crescerem no meio das pedras nesta vida.

Trabalhando com crianças, já encontrei muitas delas sem pai. Muitas mesmo – desde aquelas que só têm o nome da mãe na certidão de nascimento, passando por aquelas que odeiam seus pais e preferiam ignorá-los, até aquelas que já tiveram muitos pais na vida, sem que nenhum deles chegasse a ser pai de verdade ( e até hoje me emociona ver um pai na reunião da escola, ou indo buscar o filho e carregando ele nos braços, ou brincando com eles no jardim da EMEI enquanto o portão no abre ). Muitos dos meus amigos também não têm pai. Curiosamente ( ou não ), também nunca tive um sogro. Todos os namorados mais constantes não tinham mais pai, ou não sabiam onde eles estavam, ou não me deram a oportunidade de conhecer seus pais. Esse buraco de pai sempre perto de mim, talvez me lembrando do meu próprio buraco… Me lembrando da falta que faz ter um pai.

Isso porque um pai faz muita falta, especialmente para uma filha. Faz falta ter alguém pra ninar você, pra te dar banho, pra dar bronca, pra cuidar das suas coisas, consertar os brinquedos e as coisas que quebram em casa, pra dar presentes, pra sair por aí com você nos ombros, pra dizer pra todo mundo que você é filha dele, pra te defender, pra te elogiar, pra te dizer como você tá linda quando estiver adolescente, pra ficar bravo com o tamanho da sua roupa ou com a quantidade da sua maquiagem, pra te ensinar a dirigir, pra ir te buscar à noite quando você está estudando ou saiu pra badalar, pra te levar ao hospital quando você está doente, pra te emprestar dinheiro, pra dar dura em paquera safado e implicar com seus namorados, pra te ensinar o que você não sabe, pra te levar pelo braço no dia do casamento, pra segurar os seus filhos no colo e levá-los pra passear. Faz falta sim, eu sinto essa falta todos os dias, mesmo tendo aprendido a fazer tudo isso sozinha. Faz falta e sempre fará. Falta sem compensação possível.

Talvez um dia eu também tenha uma família, e espero que nela tenha uma mãe feliz e um pai amoroso e presente. Hoje eu vou estar com meu irmão, que é pai dos meus dois sobrinhos lindos. Ontem, quando o via brincar com os filhos, ele, que cresceu na mesma família que eu, e estava ali, tão presente, firme e carinhoso, eu percebi que meu pai, se o visse, se nos visse, estaria orgulhoso de nós, de quem nos tornamos, de quem ainda podemos nos tornar. Então eu percebi que, pela sua falta ou sua presença, o maior presente que o meu pai me deixou foi ter esperança de sempre fazer um pouco melhor tudo que a vida me der. Não faço a menor ideia de onde ele está, mas pela fé, espero que ele saiba que, acima de todas as dores, eu também tenho orgulho de ser filha dele. E que tudo que eu mais queria hoje era tê-lo por perto pra presenteá-lo, abraçá-lo, cozinhar pra ele e dizer feliz dia dos pais.

Das Pedras

Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida…
Quebrando pedras
e plantando flores.
Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude
dos meus versos.

Cora Coralina


( Obrigada a Rô Adorável, que me lembrou dessa pérola linda em forma de canção… )

15 comentários sobre “A FALTA QUE FAZ UM PAI

  1. Deus abençoe seu dom de perdoar, amiga… E de se refazer do nada tantas vezes. Não tive pai ( e sou sua amiga, kkkk ), e sei como faz falta, e vejo essa falta no meu filho que tb cresce sem que o pai dele seja pai de verdade, tá aqui, esperando o palhaço, que não vem… Hj acordei revoltada, e vc quebrou todas as minhas pedras de raiva e mágoa com suas palavras doces, mesmo doídas, e toda essa poesia e esperança que vc esfrega na cara da gente mesmo qdo o assunto é o mais terrível… Obrigada por, mais uma vez, me salvar da minha própria dor ao contar como lidou com a sua, ao ser exemplo pra mim. Eu te amo e te desejo um dia dos pais maravilhoso, e tenho certeza que vc terá uma família linda, e que vai arrumar um pai maravilhoso para os filhos que vc terá e vai amar, e eles saberão que terão muita, muita sorte. Bjos!

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  2. Vc me fez chorar uns três litros, e eu que garantia que estava acima dessas coisas mundanas de ser órfão em um dia dos pais…
    Essa música é tão linda…
    A poesia é maravilhosa…
    E você é tão especial, Karina.
    Desejo a você um dia alegre, como desejo todo dia…
    E um beijo bem grande pra você que é tão amada… E uma flor entre as pedras da vida.

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  3. Karininha, que coisa mais linda. Mesmo sem ter vivido tal e qual estas experiências, como elas têm um tom universal, como consigo me identificar e vinculá-las no meu coração às minhas próprias histórias… Que bom este seu poder de compartilhar, assim de forma tão irrestrita, tão ilimitada. Acho que acima de todos os erros e acertos que podem ter havido, seu pai realmente se orgulha muito de quem você se tornou e de todo o seu potencial. Beijo e saudades!

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  4. Karina, como me encanta a maneira como vc traduz sentimentos em palavras. Na sexta-feira eu chorei ao ver um pai passeando feliz de mãos dadas com seu filhinho. Me senti péssima por estar invejando uma criança, eu uma mulher com 30 anos na cara. Meu pai também começou a morrer para mim assim que eu comecei a entender quem ele era. E há quase 15 anos convivo com o luto de um pai que fisicamente ainda está vivo. Lendo seu texto, me dei conta de quem também só namorei homens que não tinham um pai presente. E passo meus dias tentando me convencer de que eu não preciso de nenhum homem pra nada. Espero que um dia, como vc eu também possa aceitar as limitações das pessoas, consiga perdoar e consiga sentir falta de meu pai.

    Vc é uma pessoa iluminada, te admiro demais.

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  5. “Quem cresce no centro de uma família doente, entende justamente o que é isso, o que é essa luta pela sobrevivência emocional; quem não, não entenderia nunca, nem com todas as palavras do mundo ( e me arrisco a dizer que, por isso, essas pessoas deveriam agradecer todos os dias ).”

    Amiga, desabei nesse parágrafo…
    Passei o domingo pensando em meu pai, fisicamente vivo, mas longe e pra mim numa situação que ainda não consegui elaborar… É tudo tão difícil, os sentimentos contraditórios, confusos…
    Todos carecemos de um pai… Pra tudo isso que vc expôs tão bem… E é tão difícil quando isso nos falta… E o exercício de tentar entender, perdoar e superar é complicado, lento, e necessário… Ainda estou engatinhando nisso…
    Eu sinto falta de meu pai, mas acho que de um pai que imaginei que seria bom, e não aquele que não posso contar…
    Por isso peço a Deus que me auxilie, como o Pai maior…
    Bjs, amei e refleti com mais este texto, amiga…

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  6. Lindo!
    Meu pai morreu quando eu tinha 9 anos e jamais tive uma referência masculina ao meu lado. Minha mãe fazia questão de dizer que era pai e mãe e, embora realmente o fosse, nunca conseguia compreender a falta que eu sentia do MEU pai!

    Hoje tenho um pai maravilhoso do meu lado, o pai da minha filha, e fico feliz por esar construindo a família que sempre sonhei e nunca tive!

    Que o pai maravilhoso para os seus filhos chegue também! Quero ver novas lindas histórias contadas por aqui!

    beijos

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  7. Acabei ‘caindo no teu blog por acaso’ e tal foi a surpresa quando me deparo com esse texto lindo, comovente, impossível não ser tocado por ele. Não te conheço mas quero dizer que compartilhamos do mesmo sentimento nessa data, o sentimento da perda, da inconformidade e o mais importante da esperança. Inclusive postei a minha história no meu blog no mesmo dia que tu postou a tua. Grande abraço e continue nos tocando com a tua sensibilidade.

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  8. Não sei o motivo de não ter lido isso no dia dos pais… e eu bem que precisava. Fiquei zangadinha com meu pai, que sempre foi presente, amoroso, cuidadoso… sabe aqueles pais de princesinha de conto de fadas? É o meu. E por ser tão bom, uma besteirinha que ele faz me incomoda e eu me zango. Precisava ter lido isso antes. Mas pelo menos não deixei passar o dia dos pais sem abraçá-lo e fazer as pazes (que na verdade a zanga era só dentro de mim, ele nem soube que nós brigamos! hahaha)

    Beijo, queridíssima!!!

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  9. Lendo e chorando com o teu texto-desabafo-relato e com os comentários das outras pessoas penso como alguns homens não valorizam o papel -importância- de ser pai (talvez também não tenham tido um pai, por isso não saibam ser, ninguém dá o que não tem), mas realmente é muito doloroso, tenho pai, ele ainda é vivo, mas desde que nasci fui rejeitada por ele, não sei porque, só sei que isso sempre foi um sofrimento pra mim, toda a infância em busca de amor e aceitação, na adolescência comecei a enxergar certas coisas, que me doeram mais ainda, ás vezes até preferia não ter pai, ter o vazio, do que ter uma figura que sempre me desprezou (olhe, é muito complicado isso), mas vivo e tenho vivido, e vivo tentando compreendê-lo, e tento ser diferente, não tenho filhos, AINDA, mas quero ser uma boa mãe, e peço a Deus que me dê sabedoria para escolher um bom pai, para os meus filhos, de certo eles terão suas dores, é normal da vida, por mais que queira, não poderei evitá-las, mas que não sofram tanto… Gostei de ver toda a sua luta em busca de respostas e de refazer conceitos, realmente me fez pensar! Vá na fé!

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  10. Karina, esse texto é tão verdadeiro e tocante que me lembrei do meu pai. Ele esteve sempre presente, mas não me lembro de muitos momentos felizes com ele. Era um homem complicado, em geral de mau humor, não se dispunha a dar atenção à filha única, embora nunca tenha sido violento (a não ser às vezes em palavras) ou conscientemente cruel.
    Pai é uma figura fundamental em nossa vida, e quando ele falha deixa sempre um vazio que nunca vai ser preenchido.
    Um beijo.

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  11. Karina, cai no seu blog por acaso.
    Mas não acredito em acasos..
    De qualquer forma li seu texto e ele me tocou muito.
    Lembrei-me de meu pai, que está vivo, e que me deu tudo isso que você foi negligenciada.

    Embora não tenha vivido o que você viveu, entendo sua dor!

    Parabéns pelo texto!

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  12. Um post emocionante, mas eu também tive problemas com o meu pai, pois ele teve condição de nos sustentar e preferiu omitir isto até o ponto que a mentira se apresentou em nossa frente, mesmo quando a gente disse para ele dizer a verdade para que pudéssemos ajudar…

    Daí em diante, a nossa relação nunca foi a mesma.

    Fique com Deus, menina Karina Cabral.
    Um abraço.

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  13. meu pai morreu faz 2 anos ele era meu amigo, brincava comigo me levava pra pescar e varias outras coisas depois que ele morreu eu fique triste sózinho com minha mãe e ermã depois eu so penso nele e sempre vou amalo porque ele era o unico pai da minha vida nesse mundo agora eu tenho 10 anos de idade eu não esquesso ele e nunca vou esquesselo pra senpre e um dia eu ainda pemsso em ficar com ele no ceu

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