A ÚLTIMA CARTA

dayvidwindson - carta

“Há muito tempo, sim, não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci: olha em relevo
estes sinais em mim, não das carícias
(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que a sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
“Deus te abençoe”, e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.”

Carlos Drummond escreveu esse poema pra mãe dele, morta há muito tempo. Não é um poema de inconformismo, nem de revolta, nem de medo do futuro, nem de esperança. É um poema daqueles que constatam a realidade da vida. Pessoas amadas vão embora, nos deixam sozinhos na caminhada, e sentimos falta delas. Muita falta. E a vida perde um pouco do brilho, nas noites acumuladas dos nossos dias. É um poema que fala sobre a dor da saudade.

Enfim chegou a primavera. Você se foi no dia em que a primavera chegou, um ano atrás. E se foi quando a primavera da minha vida tinha chegado, bem no comecinho dela; quando eu estava começando a admirar as flores. Um tempo de alegria, de paz, de felicidade, de tranquilidade. Mas fez inverno outra vez. E outra vez. E outra vez. E está frio ainda. Embora eu veja os raios de sol lá fora, e tenha me esforçado para manter portas e janelas abertas… Ainda está muito frio. Muitos galhos ainda estão secos.

Dizem que agora acaba o meu período oficial de luto. É o que dizem os psicólogos e teóricos. Se eu fosse uma viúva de antigamente, só agora poderia tirar o vestido preto. Fico pensando que tipo de piadinha você faria ao me chamar de viúva. Penso  nas muitas outras risadas e piadinhas que você fazia sobre tudo. Penso em como você ria de mim de um jeito tão doce que eu não ficava brava, apenas ria com você. Acho que nunca, em tempo algum, ninguém prestou atenção em mim como você prestava. Você me media milimetricamente, me conhecia, e se interessava por cada mínimo movimento, pensamento, expressão, palavra, ação, sentimento meu. Você me filmava nos mínimos detalhes. Como dizia o Chico, “descartava os dias em que não te vi… Como de um filme, ação que não valeu.”. E eu fico pensando em como eu me sentia amada… No quanto o nosso amor me fez crescer… No quanto ser amada por você me libertou de tanta coisa que me prendia, que não me deixava ser quem eu sou… E em como, mesmo fazendo algo tão sério, a gente se divertia juntos.

Você não faz falta só pra mim. Faz falta pra sua família… Pra sua irmã, pra sua tia. Elas choram de saudade de você. Faz falta também pros seus amigos, que vira e mexe lembram de você, das coisas que faziam juntos. Faz falta pro mundo, que precisava tanto de mais gente disposta a ter a militância que você tinha, com o humor consistente e profundo que você tinha, com a sua inteligência rápida e sutil, com todos os seus talentos. Eu sei que dor não se mede, e que a dor de cada um é de um jeito. Só posso falar da minha. Ela é grande. E de vez em quando me bate com tanta força que me derruba. Mas eu levanto. Como você costumava dizer, eu sou marruda e sei fazer bico sem chorar.

Depois que você foi embora, ainda apareceu muitas vezes. Fiquei com suas coisas, seu computador. Achei nele uma carta linda que você escreveu sobre mim… Poemas que você passou a limpo com o meu nome – coisas que eu leio e me consolam toda vez que alguém ou alguma coisa me faz me sentir um lixo. Achei a pasta com músicas do Chico e as love songs que você baixou pra eu me divertir. Achei cartinhas dentro dos livros, achei coisas legais que você ainda não tinha me mostrado. Mas com o tempo, as coisas pararam de aparecer. O que restava de você foi indo embora. Eu tinha segurado umas roupas suas, mas o seu cheiro também sumiu delas. Dei pra uns haitianos que aportaram aqui em São Paulo, sem nada pra vestir. Creio que você, mesmo apegado como era, teria curtido que fosse assim. Você foi sumindo… E sinto sua falta.

Sinto sua falta, sim, e muitas vezes não me conformo. Fico pensando naquele dia. Eu nunca tinha visto ninguém morrer assim, tão de perto. Enquanto eu gritava desesperada pra você ficar, pra você aguentar, e te sacudia com tanta força, eu vi o brilho dos seus olhos sumir. Como tantos outros momentos especiais, foi um momento só nosso; mas, ao contrário dos outros, foi tão doloroso. Espero que você não tenha sentido dor. Mas te digo aquela imagem nunca vai sair da minha cabeça. Nunca.

Várias vezes eu pensei em morrer. Claro, não teria coragem pra me matar, não sou suicida. Mas eu quis que acabasse também pra mim. Não só por sua causa, não ( pode parar de se sentir o gostosão ), mas porque pensei que, de repente, naquele dia você ficou livre. Livre de tudo. A morte, enfim, é isso. Essa liberdade dessa vida maluca que a gente leva. Não tem mais problema, não precisa mais pensar em dinheiro, não sente mais dor, não tem que aguentar as pessoas loucas fazendo besteiras e magoando você, não tem mais que se preocupar em atingir essa ou aquela meta, não precisa mais sofrer. Pronto, acabou. Eu pensava, podia acabar pra mim também. Descanso. Pedi, algumas vezes antes de dormir, pra Deus não me acordar no dia seguinte. Mas Ele me acordou.

Claro, a vida andou. Naquele dia mesmo, cedo, sem nem sonhar com o que viria a seguir, você me fez prometer que eu andaria sem você. E eu cumpri. Continuei a faculdade. No trabalho, as coisas estão maravilhosas. Fiz uma greve imensa, você ficaria orgulhoso da sua Barbie Operária. O projeto do Quintal tá lindíssimo e indo rápido para além dos muros da escola. Continuei batendo muito papo com as meninas, cuidando da minha mãe e das crianças, continuei dando atenção pra esse monte de gente que eu amo e que me ama. Até me arrisquei a tentar amar de novo. Eu fui, aos trancos e barrancos, tomando antidepressivo, passando no psiquiatra, pensando em um dia de cada vez, falando e calando, procurando grupo de apoio, fugindo da realidade, sem vontade nenhuma de fazer nada, carregando noites e noites sem dormir, dando cada passo dolorosamente, e me achegando com Deus, que é o único que podia me entender… Eu fui. E cheguei aqui… Um ano depois do dia mais terrível da minha vida, viva. E sabendo que ainda tem muito pela frente.

Tem tanta coisa que aconteceu, que eu queria te contar. Tanta. Tanta coisa boa que você gostaria de saber. Vamos ter sobrinhos… Fernanda e Patrícia estão grávidas. A Deby cresceu, está adolescente, uma mocinha linda. Guilherme, Letícia, Dudu e Pedrinho também cresceram, e cada um desenvolveu ainda mais encantos; estão tão lindos. E a sua Bianca… Ah, como ela está linda. Vejo pelas fotos. Não tenho muita coragem de ir vê-la pessoalmente… Acho que ela é a pessoa que mais me lembra como você estaria feliz em estar vivendo, se pudesse. Eu fujo… Porque, se tem uma coisa que aprendi nesse tempo, é que eu sou humana. Falível, e atingível. Às vezes tenho que fugir, me esconder, ficar só.

Minha mãe operou o ombro, e já se recuperou… Meu irmão mudou de casa. Aliás, todo mundo mudou de casa. Eu comprei o apartamento do Levy… Saí da nossa casa. Não foi fácil, sabe. Mas mandaram, eu fiz. Aliás, fiz várias coisas que decidiram por mim. Não me importo. Não tinha condições mesmo de decidir. Não foi ruim. Estou aqui, com a minha casinha, morando sozinha. É menos divertido do que eu pensava. Você sabe, me enrolo toda com as coisas práticas. E sofro com a solidão. Fiquei tão carente… Você não reconheceria. V0cê me ajudava demais com essas coisas todas… Tem tanta coisa que ainda não resolvi. Sinto falta de você cuidando de mim.

Queria te contar tantas outras coisas mais. Queria comentar as coisas que acontecem com você. Queria saber sua opinião… Queria sua companhia.

Esta é a última carta que te escrevo. Não porque você não mereça outras, mas porque preciso que seja assim. Você me dava tanto que não consigo conversar mais com você sem resposta… Não dá. É muito vazio.

Mas quero que saiba que amar você e permitir que você me amasse foi uma das melhores coisas que fiz na vida. E que, se eu soubesse todo o preço que pagaria… Eu teria feito tudo de novo. Só que mais rápido. Pra gente ter sido mais feliz ainda.

Adeus, você… “E não pensa que eu fui por não te amar.” ❤

https://www.youtube.com/watch?v=PUs144LMiy4

7 comentários sobre “A ÚLTIMA CARTA

  1. Simplesmente sem palavras…
    A estrada longa e de forte tempestade continua escancarada em meus olhos. Acendo o farol todos os dias e só consigo percorrer aquele único caminho.
    Fujo quando preciso, chego perto quando acho necessário.
    Não está sendo fácil viver… Também gostaria que acabasse pra mim… Estou no “piloto automático” mas há tanta vida lá fora…
    Você consegue descrever a dor como ninguém. Obrigada por me ajudar, mesmo sem ter noção da dimensão disso!
    Um abraço!

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  2. Linda carta, lindas palavras. UMa música, ou uma poesia , não sei.
    O que sei é que, é muito bom saber de você.
    Sempre penso como você está, mas não te pergunto. Se estivesse querendo que todos soubessem, publicaria.
    Você colocou aqui sua dor, e doeu em muita gente que tem o mínimo de sensibilidade.
    Não o conheci pessoalmente, mas até hoje, sinto falta do seu humor inteligente, ainda que virtual, nos embates duros com as pessoas ruins.

    Seria lindo e romântico, não fosse uma história tão verdadeira .

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  3. Eu estava num medo danado de ler esse post… olhei o link com pavor e depois disse a mim mesma: Vai lá mulher, coragem. Se Karina conseguiu escrever, você consegue ler. E fui, e li, e reli, e as lágrimas não param de cair, e tanta dor que não cabe no meu coração. E a única coisa que passa pela minha cabeça agora é que tudo o que eu mais queria era poder dar um forte abraço na minha querida Mafalda, que ao longo desses dez anos de leitura me fez sonhar, sorrir e chorar.
    Mafalda, querida. Um sinto muito não é nada diante de tudo, mas já é um bom começo.
    Aponta pra fé e rema!

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  4. Karina, como você disse cada um sabe o tamanho de sua dor , como expressá-la e elaborá-la. A dor do tamanho do amor expresso nesta carta e transformado em palavras que atinge a todos nós. Um belo e doloroso caminhar. Beijos querida.

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  5. Sem palavras… Posso entender a dor, a saudade… mas sentir a sua dor é uma outra dimensão pois até quem sente na pele a perda de alguém, com ingredientes parecidos ainda não é a mesma coisa… Quando perdi a minha mãe, aprendi a me resignar, pois ninguém saberia a dor que eu sentia e falar pode até ajudar, mas não cura…

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