PESSOAS OU PERSONAGENS? – PARTE III – BETH, A TERAPEUTA

PESSOAS OU PERSONAGENS? – PARTE III A – BETH, A TERAPEUTA

Psicólogas... Há uma crença popular de que tratamento psicológico clínico ou é pra gente doida de pedra, ou pra dondocas e frescos em geral. Carregava comigo a força dessa idéia quando iniciei a minha faculdade de Psicologia, aos 18 anos. Pra variar, caí de pára-quedas lá. Até ali, nenhuma das escolhas que eu tinha feito na vida eram realmente escolhas, mas a faculdade de Psicologia me pareceu algo divertido e interessante, por que não? Queria entender a cabeça das pessoas, passei a minha vida toda observando, pensando, tentando, trabalhando com elas. Achei que a Psicologia poderia ser um instrumento valioso no meu ofício de professora… Mas era só.

Desde os primeiros momentos do curso, jurava que não queria ser psicóloga clínica, de jeito nenhum. Alguns de meus colegas e professores eram tão pedantes e chatos que agravavam meu horror à idéia. Não queria ser daquelas pessoas que vivem interpretando a si mesmas e aos outros, e muito menos queria pertencer ao grupo dos profissionais que se acham a última coca-cola do deserto, e gelada, daqueles que dizem que todo mundo precisa de um psicólogo. A Psicologia é uma carreira facilitadora de achismos, charlatanismos e simplificações; e um abrigo perfeito para egos inflados, papagaios inconsequentes e pessoas vazias. Tal como não queria me envolver profissionalmente com a clínica terapêutica, também achava que podia prescindir de um psicólogo na minha vida pessoal. Afinal de contas, pra que ir a um lugar todas as semanas passar uma hora inteira falando de mim mesma pra alguém que não vai me dar respostas prontas, e ainda pagar por isso? Bobagem, balela, blá-blá-blá, algo nada científico. Ignorei o conselho de todos os professores ( que pregavam que todos os futuros psicólogos precisavam de terapia psicológica ). Criei teorias interessantes sobre o assunto, todas pra apoiar a minha repulsa pelo consultório. Para mim, estava claro – psicologia, só se fosse institucional. Tola, ainda não sabia o que sei hoje – se existe alguém que não pode dizer que jamais vai fazer uma coisa… Esse alguém sou eu. É fatal.

Passei os quatro primeiros anos do curso construindo um bom conhecimento teórico, e algumas paixões por algumas teorias – talvez nenhum curso seja mais gostoso para quem gosta de pensar sobre a vida do que esse. Mas nada que me tocou a alma e nem despertou em mim o tesão de exercer a profissão. Li muito, escrevi demais, tive conversas memoráveis. Conheci a fundo Freud, Skinner, Jung, Pearls, Winnicott, Klein, Fromm, Pichon e mais um monte de nomes. Aprendi a aplicar todos aqueles testes insuportáveis, treinei um ratinho na caixa de condicionamento, frequentei o laboratório de Anatomia… Até chegar ao quinto ano. No curso de Psicologia, o quinto ano é feito só de estágio e supervisão – prática e mais prática. Comecei os estágios na área organizacional e institucional, e, apesar de me interessar pelas discussões dos casos clínicos, ignorei a possibilidade de atender um paciente.

Um professor, daqueles que a gente odeia – mas precisa – depois de tentar com toda delicadeza me convencer da idéia de que eu precisava atender um paciente ( sem sucesso ), um dia, a um semestre do meu tão sonhado e suado diploma, me disse:

– Escuta aqui, garota, aqui está a pasta com um prontuário – você vai atender um paciente, um molequinho, de 2 anos e meio.
– Eu não quero atender, dê pra alguém que quer, tem gente que mataria pra ter essa pastinha… Eu tô fora, obrigada.
– Não estou perguntando se você quer. Você vai atender e pronto.
– Por quê?
– Porque EU quero.
– Você não pode mandar em mim, não quero e pronto.
– Posso, sou seu professor e vou te provar que você leva jeito pra coisa. Se depois você quiser desistir, problema seu.
Silêncio. Olhei aquela criatura com o maior ódio desse mundo.
– E se eu não atender?
– Eu não deixo você se formar, porque vou infernizar tanto a sua vida que você vai se arrepender amargamente do dia em que escolheu esse curso.

Achei que era fim de discussão. Mesmo uma aluna topetuda e teimosa tem que ter medo do perigo e saber qual é a hora de parar de questionar e acatar as ordens. Ele deixou o prontuário na mesa, virou-se e foi embora. Malcriado.

Li o prontuário. Daniel ( claro, troquei o nome e alguns detalhes, psicóloga e padre não quebram certos segredos ), 2 anos e 6 meses, não dorme à noite, é agressivo, treme e bate nos pais, que acabaram de se separar. A mãe procurou atendimento porque não sabia mais o que fazer com seu pequeno ditador. Pede urgência.

A única coisa que eu pensei é, como, meu Deus, como alguém leva uma criança de 2 anos e meio a um psicólogo?!? Quem é o doido, o moleque ou ela? Por mim, mandaria a mãe procurar ajuda e ponto final. Mas a minha curiosidade foi maior. Algo me dizia que o moleque precisava encontrar comigo. Comprei a idéia. Preparei a caixa de brinquedos, a sala lúdica, marquei o horário, conversei com os pais. E quando entramos na sala, o molequinho e eu… Nossa, que coisa doida. Parecia que sempre estivera ali. Que ali era o meu lugar. Ele e eu nos entedemos perfeitamente. Eu lia os sinais que ele me dava, e, hora intuitivamente, hora racionalmente, respondia a eles. E ele saiu dizendo, “eu volto pra te ver, amiga, preciso da sua ajuda pra enfrentar os monstros”.

Ali eu saquei o que era uma terapia psicológica. E deixei minha teimosia boba de lado pra me envolver com a magia da ajuda profissional às pessoas que estão sofrendo e/ou querem se conhecer um pouco mais ( mesmo que isso me custasse ver o sorriso vitorioso do meu professor chato quando me ouviu relatar, tão encantada, o que tinha acontecido na sessão ).

Ainda na clínica, atendi mais 3 pacientes além do Danielzinho, que levei depois comigo pra uma salinha que montei com alguns amigos, quando eu já estava formada e com o certificado na mão. E lá, surgiram mais alguns, todos crianças, que com gente grande eu não me entendia. E em pouco tempo eu senti na pele o quanto podia ser complicado lidar com os problemas dos outros antes de pensar nos meus. Como é difícil essa missão, a de amparar pessoas que chegam a você tão frágeis, tão tristes, tão esperançosas, tão duras. Como é sério isso, o quanto depositam em você problemas, cargas e responsabilidades que não são suas, e o quanto isso pode grudar nas suas costas se não houver preparo e responsabilidade. Como é complicado cuidar dos outros sem cuidar de si mesmo antes. Não dava mais pra fugir. Pra ser psicóloga, pelo menos se quisesse ser uma das que não são picaretas… Eu precisava procurar a MINHA terapeuta.

Foi uma luta. Conseguir indicação de alguém em quem pudesse confiar… Achar um lugar que fosse acessível, da minha casa ou dos meus locais de trabalho… Tomar coragem de ligar… Separar um ( bom ) dinheiro pra isso… Arrumar um horário numa semana cheia de compromissos. Fui amadurecendo a idéia, arrumando a minha vida, bati em algumas portas erradas, até que liguei pra pessoa certa. O cartãozinho estava lá, Elizabeth, terapeuta junguiana, telefone tal.

– Elizabeth?
– Pode chamar de Beth… Eu mesma.
– Queria marcar um horário pra conversar.
– Claro… Estava mesmo te esperando, moça.

Marcamos. Era uma quarta-feira chuvosa, chuvosa mesmo. Nunca vou me esquecer. Torcia as mãos de nervoso no ônibus, vendo aquela tempestade cair como se fosse um mau sinal. Pensei em desistir. Cheguei a deixar alguns vagões do metrô passarem antes de decidir. Mas acabei indo. Meu guarda-chuva quebrou, o trânsito estava impossível, fiquei totalmente ensopada, o carro passou e jogou mais água em mim, meu walkman ficou com as pilhas fracas, quase fui assaltada, e cheguei atrasada, mais nervosa ainda. Passei no banheiro pra respirar, lavar o rosto e torcer o cabelo molhado. Ouvi ela me chamar, e fui. Mal conseguia reparar nela, entrei na sala sem saber se era loira ou morena, gorda ou magra, velha ou jovem. E só depois que me sentei na poltroninha ( coberta por um plastiquinho providencial ), de frente pra ela, é que percebi o que significava aquilo tudo pra mim. Não sou de tremer, mas tremi dos pés à cabeça. E não olhei no olho. E depois de um sorrisinho burocrático, começamos.

– Olá, Mafalda… Você está toda molhada… Parece cansada… Foi um longo caminho até aqui, né?
– Sim, foi… E como foi.
Respondi automaticamente… Mas entendi o que ela quis dizer.
– Me conta, o que te trouxe aqui?

Ai, ai, ai… Se o caminho para trás era longo… Ainda mais longo seria o que viria. Sabendo disso, respondi a pergunta.

Continua…

32 comentários sobre “PESSOAS OU PERSONAGENS? – PARTE III – BETH, A TERAPEUTA

  1. Seu texto nos conduz por todos os tipos de sentimentos. Desde o “o que é que vem hein?” até o “como assim ‘continua’? quer me matar de curiosidade?”, passando inevitavelmente pelas lágrimas…

    Seu post me deu vontade de visitar um psicólogo… Pelos argumentos q vc apresentou, e pq eu não acho normal eu me emocionar tanto toda vez q leio um post seu aqui.. hehe.

    Quer me tratar dotôra?

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  2. Nas últimas duas semanas a idéia de fazer terapia tem me rondado com maior frequência. Mas acho que é uma idéia um pouco vaga ainda. Mas agora fiquei muito curiosa para saber mais um pouco da sua experiência…Beijos

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  3. Menina querida,
    Desta água não bebo, não digo mais tb.Há pouco mais de um ano se alguém me falasse em blog teria um ataque de risos.
    Mafalllllllllllllllllllda!!!!
    Seu texto impecável, prende a gente do começo ao fim e isto não é fácil.
    Então além de psicólga e professora, vc é de fato uma escritora. Acredite em sua amiga aqui!

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  4. E vc ainda tem a cara de pau de não querer seguir essa profissão??? Que feia! 😛
    Engraçado, eu e todos os seus amigos, familiares e namorados, segundo consta, temos sempre a mesma sensação, a de conhecer a Beth, como se ela fizesse parte da turma, de tanto que vc falava nela, com tanto carinho e respeito.
    Quando te reencontrei ano passado, vi a diferença em vc… Segura, mais bonita, se amando tanto… Mais amável também, madura. Que bom saber que a psicologia funciona, como psicólogo… Só posso ficar contente.
    Bjo, e continua a história… Fiquei curioso, apesar de saber muitas passagens dela. 😉

    PS:. Carlinha, como não citar vc? Já te roubei do Zé, ganhei o ano, hehe… Bjo tb.

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  5. Oi Mafaldinha!
    Que texto, que texto!
    Eu morro de vontade de fazer terapia. Sei que preciso muuuuuuito, sei que seria maravilhoso pra mim. Tenho muito o que trabalhar aqui dentro. Se eu morasse em sampa, ia iniciar um movimento organizado pra incentivar a abertura do seu consultório… eu ia querer ser a primeira.
    Bom, não fiz ainda por motivos financeiros… minha vida de arquiteta, por enquanto, só me permite pagar as contas básicas. 😦
    Beijos!
    Ps.: Não demore a continuar, hehehe.
    Ps2.: Beijo, Ful! 😉

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  6. Adorei o texto e a história. sempre quis fazer psicologia. Adoro o tema. Já fiz análise tbem e foi muito bom pra mim. Que bom q vc perdeu seus preconceitos e aceitou seu caminho. Tõ doida pra saber o resto da história. bjos mil.

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  7. De repente bateu uma dúvida imensa: Por que mesmo desisti da psicologia? [abandonei o curso no terceiro pro quarto ano] mas hoje lendo seu texto, pela primeira vez fiquei em dúvida se foi mesmo a única e melhor escolha possível. Beijos.

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  8. Antes mesmo de ler a conclusão dessa trama, posso certificar de que é uma bela história: a teimosa que foi dobrada e percebeu as maravilhas que são as possibilidades!! Um grande beijo, Mafalada. Ah, e eu acho que TODO MUNDO devia fazer terapia. 😉

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  9. Sabe, Karina, teu histórico emociona e deixa a gente cheio de questionamentos. Vou esperar pra ver o final de tudo. Sei que tudo terminará de uma maneira agradável. A luta para aceitar a carreira inicialmente forçada, parece que está tendo o seu devido valor. Tenha uma boa semana, minha Amiga doutora.

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  10. Preciso dizer? Eu morria de ciúme da Beth! Hehe. Sempre vc dizia que ela tava certa, e quer saber mais ainda? Ela tava mesmo. Quem te viu e quem te vê… Nossa, outra pessoa mesmo. Eu conheço sua vida, e te digo de coração que poucas pessoas passariam por coisas tão sofridas como as que aconteceram com vc com essa sabedoria e calma que vc tem… Quem te vê assim tão doce nem sonha o qto vc teve que enfrentar. E a Beth te ajudou demais mesmo.

    Bjo, miguinha, escreve logo o resto.

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  11. Karina, quanto mais te leio mais tenho a convicção de que você poderia perfeitamente seguir diversos caminhos na vida com sucesso. Porque se não fosse psicóloga ou professora, com certeza poderia trilhar pelas sendas da literatura… 🙂

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  12. Depois de tanto ler você, enfim lhe deixo meu recado [pra isso não precisei de terapia,rs, que terapia já fiz há muiiiito tempo, e foi ótimo!]: parabéns pelos seus textos, que garantem sempre uma leitura pra lá de agradável. Concordo plenamente com quem disse que você poderia seguir o caminho da literatura. Seus textos, espontâneos e sinceros, fisgam o leitor. Eu que o diga: desde que descobri seu blog, tenho tido o prazer de ficar mordendo e mordendo e mordendo as iscas e com elas vou me deliciando sempre. De quebra, desejo-lhe sucesso em tudo. Parabéns!

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  13. esse povo q quer te empurrar pro professorado,psicologia ou escritora……é pq ainda não te viram cozinhar!!!!!! ahahahahah td q vc faz faz direitinho miga!!!! mão de ouro essa sua.

    bjoca, querida, estou de volta, pelo menos até o pc quebrar de novo.

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  14. Nossa Mafalda, lendo seu texto, é uma crônica, tive uma idéia que pode levar à minha re-estréia, já andado na vida, em terapia. Dá para faze-la por escrito? Pensei nisso, porque tenho que a terapia funciona fazendo-nos ouvir o que falamos, os terapeutas dirigindo a conversa para que possamos ver contradições e refletir. O problema é que não ligo muito o que falo, sou jornalista e só presto atenção no que escrevo, leio e penso.Será? Independente disso, estou guardano o próximo capítulo. Beijo. Já estou mudando de idéia…

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  15. Tudo sempre bom por aqui. fiquei curiosa sobre o que aconteceu com o Danielzinho. Toda profissão tem as suas compensações,não é mesmo? A minha é ver uma empresa aumentar seus lucros ao mesmo tempo em que deixa seus funcionários e clientes felizes, a sua é ajudar as pessoas com seus monstros, acho que isso é satisfação… Beijão. To de volta. kal

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  16. Eu adoro psicologia..a minha irmã quem faz e eu vivo aprendendo com as aulas dela e tudo o mais. Esse teu texto me comoveu nem sei porque, mas também por ver alguém descobrindo (com técnica e experiência) algo que eu já tenho em mim com tanta força.

    Beijos moça

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  17. Uma amiga me passou o link e adorei ler seu texto… como ex-acadêmica, recém psicologa e atual cliente rsssss, me senti a própria protagonista do texto rsssssssss
    Parabens, muito bem escrito =)

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  18. Parabéns mafalda, é realmente muito bom ler sobre sua experiência, sou psicóloga também, mas quando eu entrei no curso(bastante consciente do meu desejo de ser psicóloga) já tinha uma grande vertente para a clínica , até dizia que na minha cabeça psicólogo que é psicólogo tem que passar pela clínica, bom mas eu aprendi a não ser tão radical,me interessei também pela psicologia hospitalar mas continuo apaixonada pela clínica lacaniana e é esta que eu persigo, inclusive todas as quintas às 10h na minha análise pessoal(imprecisdível à formação do psicanalista). Mais uma vez parabéns e até breve.

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  19. oiiii….
    bom to fazendo uma cadeira de psicologia e preciso q me responda umas perguntinhas!!!!
    qual a função do divã? qnd ele é usado? todos pacientes vão p o divã?
    como funciona a analise pessoal? a consulta de um psicologo c outro é a msm q um paciente c um psicologo? o q diferencia os?
    obrigadoooo!!!

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  20. E olha que coisa mais interessante…
    9 anos depois seu relato inspira e ainda ajuda iluminar caminhos por aí.
    Li essa sua postagem no ano passado, eu estava dentro da sala do cursinho, totalmente perdida sobre o futuro. E desde então confirmei pelo o que vou lutar e sigo em frente.
    sucesso pra ti! 🙂

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  21. Só pra azucrinar com o Tempo.

    10 anos atrás você escrevia sobre uma Beth.
    Eu, mais de 10 anos atrás, esbarrava numa Elizabeth, terapeuta junguiana então voltando para PortoAlegre.
    Acaso me trouxe de volta uma conversa nossa. Fabulosa, sutil.

    Como se pode deixar certas pessoas capazes de fábula se perderem de nós?

    fernando

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