O cerrado me chamou, eu vim. Aqui, na Canastra, nos últimos dias de 2022, eu pedi a Deus pra falar comigo. Ele, como sempre, não me negou o colo e as explicações que eu pedi.
Vim para entender o que foi este ano tão dolorido, tão difícil, tão ruim. Em vários momentos, achei que não ia dar. Mas deu. Aqui estou.
Aqui no cerrado, é tudo intenso.
Se é chuva, é muita chuva. Se é seco, é poeirão. Se é calor, esquenta tanto que incendeia.
Um bioma que não tem a exuberância óbvia da mata atlântica, ou das florestas. Paisagem enorme, que por ser curta na altura, assusta pela amplidão. Você olha, olha, e parece que não termina nunca.
Mas o que me chamou a atenção mesmo não foi o grande, mas o pequeno. Foi a vida que brota aqui no cerrado.
O desmatamento foi e é cruel. As queimadas, intensas – as naturais, e as propositais. No tempo seco, a carência de água chega a doer nos olhos. Mas… A vida se reinventa aqui. Ela resiste, e brota, e continua, e vai adiante, e enche os olhos, os ouvidos, o nariz, o paladar, o tato. A vida se adapta, e segue, apesar de todas as condições adversas.
Tem nascentes de água limpa e fresca brotando do chão seco – centenas delas. Tem flores que crescem no meio das pedras. Tem veado campeiro, ema, lobo, e tamanduá que corre no meio da vegetação curtinha, bichos livres, uma lindeza. Tem pássaros lindos, minúsculos e enormes, voando e cantando, que podem voar, e ficam aqui. Tem carcará juntando com galho seco fazendo contorno de beleza de luz e sombra com o sol. Tem árvores pequenas, retorcidas, de casca grossa, mas lindas – plantas que aguentam a seca, o fogo, e esperam pacientemente a abundância de água. Tem insetos construindo suas colônias, abelhas levando pólen pra lá e pra cá, fazendo sua função, apesar de tudo. Tem a esponjinha do cerrado, florzinha linda, que espera a chuva pra se abrir.
O cerrado me chamou pra me mostrar que nem sempre a vida vai se mostrar verde, forte e maravilhosa como uma floresta, nem sempre vai ser agradável e ter sombra.
O ano que passou, foi assim. Seca, poeira nos olhos, queimada, combustão espontânea. Na cachoeira de dentro, um fiozinho de água. Parecia que tinha secado. Mas nesse ambiente hostil, teve muita vida, muitas nascentes, muitas árvores pequenas e fortes, resistentes. Um trabalho que se reinventou e achou seu lugar, pra dar o ânimo que eu precisava pra terminar minha jornada logo mais. Novos amigos e amigas. Amigas e amigos antigos, que se mostraram fiéis e seguraram minha onda. Decepções terríveis, mas a descoberta de muita gente linda, que estava aqui o tempo todo, do lado, me sustentando. Superando a ideia de que preciso da aprovação de tanta gente que jurava me amar e me conhecer, mas não tem a menor ideia de quem eu sou e não me respeita, eu posso me encontrar e me mostrar de verdade. A compreensão do que é um casamento real, além das aparências, e o poder que isso tem na vida de alguém, me levou a um outro patamar de amor, a um outro sonho de família. Teve doença, cirurgia, medo, luto, abandono, loucura, mundo caindo a minha volta… E eu sobrevivi pra brotar de novo.
Não tenho mais medo da chuva, ela abre a esponjinha do cerrado, ela abre a mim também, ela enche a cachoeira. Criando uma casca mais grossa e retorcida, ainda que não chegue muito alto, eu posso sobreviver. Doeu muito. Mas eu estou aqui, esperançosa, me banhando no rio que começa tão pequeno e frágil… Mas depois vira um enorme e forte mar de água doce. É o caminho das águas, é o caminho da vida.
O cerrado me chamou pra mostrar que a vida é feita de ciclos, que em tempos hostis precisamos sobreviver e nos adaptar, e que nas épocas de chuva… Podemos encher, nadar e respirar aliviados. Tudo tem sua lição, sua beleza.
2023 virá, e já desisti de achar que ele vai ser assim, ou assado. Ele será como sempre.
Mas eu… Eu serei melhor e mais forte do que antes. Eu saberei crescer na adversidade e abrir depois da chuva.
Um bom ano a todo mundo que estiver disposto, disposta pra vida, em toda a sua complexidade e beleza. Que vocês também possam encontrar a esperança e a força que precisam pra continuar.