COMO NOSSOS PAIS

“Não quero lhe falar, meu grande amor
Das coisas que aprendi nos discos.
Quero lhe contar como eu vivi,
E tudo que aconteceu comigo…”

Época de eleição era uma festa. Ai, que divertido era ver e decorar as musiquinhas dos candidatos, pegar aquele monte de papeizinhos com fotos e números para brincar de escolinha ou escritório… Como era legal ver meus pais, tios e avós discutindo sobre o passado e as metas de cada candidato, tão inflamados e cheios de razão, enquanto tentava entender o que eles diziam. Como era bacana entrar com meus pais na cabine de votação e participar, com eles, desse ato interessante e incompreensível aos olhos de uma criança. Minha mãe, tão boazinha, deixava com que eu fizesse o “X” na cédula – no lugar que ela indicava, claro – e eu saía do colégio me sentindo importante. Provavelmente não sabia por quê, mas me sentia mais que importante; assim como minha mãe e meu pai, que tinham acabado de sair de um período de nulidade de direitos políticos e ali podiam votar em quem quisessem, do jeito que quisessem.

“Viver é melhor que sonhar.
Eu sei, o amor é uma coisa boa.
Mas também sei que qualquer canto é menor do que a vida
De qualquer pessoa. “

Passou a ser mais sério e prazeiroso participar das eleições na época da minha adolescência. Não demorou para que eu abraçasse a causa de um partido que me parecia ser mais do que justa. Participei das campanhas, entrei em grupos de discussão, ia ao comitê e comícios, ajudava a bolar estratégias de campanha, fazia boca de urna, comecei a ler os jornais com atenção, conheci gente apaixonada que me ensinou boa parte do que eu sei hoje. Gastei meu latim em discussões intermináveis sobre a verdade das pessoas e do universo, sobre a necessidade da justiça social e da participação democrática. Li livros e participei de conversas que talvez só deveria ter lido e ouvido depois, mas eu adorava me sentir inteligente e participativa. E esperava ansiosamente pelo dia de poder votar para coroar tudo isso, concretizando os meus sonhos. Como toda adolescente, eu acreditava que ações bem intencionadas eram mágicas.

“Por isso, cuidado, meu bem:
Há perigo na esquina.
Eles venceram,
E o sinal está fechado pra nós, que somos jovens.
Para abraçar seu irmão e beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço, o seu lábio e a sua voz.”

Quando fiz 16 anos, no dia seguinte fui ao cartório fazer meu título de eleitor que, eu acreditava, era também um título de cidadã, um comprovante da minha consciência e responsabilidade social. Me lembro da primeira vez que votei. Eu estava feliz. Muito, muito, muito feliz. E desde então, dia de votar sempre foi um dia feliz. Um dia onde eu me sentia participante. Um dia de esperança. Um dia de voz. Um dia para sentir-me parte pensante e atuante de um corpo inteiro chamado sociedade. Mesmo quando tive que escolher entre o ruim e o pior em um segundo turno, eu me senti feliz em poder votar. Aquele gosto – talvez da infãncia, talvez da adolescência – acompanharam todos os meus dias de votação até hoje.

“Você me pergunta pela minha paixão,
Digo que estou encantada com uma nova invenção
Eu vou ficar nessa cidade, não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento o cheiro da nova estação
Eu sei de tudo na ferida viva do meu coração”

O tempo passou e muita água correu debaixo da ponte. Muita. Não vou ficar falando aqui, novamente, das minhas decepções e da minha inconformidade com a mentalidade política brasileira. Não vou ficar dando razões que todos conhecem para o meu desencanto, nem justificando ninguém. Toda essa sujeira não me interessa para reclamar e para ficar me lamentando de cima do muro, mas sim para repensar. Apenas vou dizer que estava indiferente e, nos poucos momentos em que me envolvia, não conseguia enxergar um horizonte, um bom motivo. Quase cheguei a dizer que são todos iguais, e essas bobagens que as pessoas falam todas as horas por aí. Quase repassei alguns das centenas de e-mails ignorantes que recebi ultimamente. E, até hoje de manhã, eu pensei que o próximo domingo, dia de votar, seria pela primeira vez, um dia triste. Mas mudei de idéia por causa do Belchior e da Elis.

“Já faz tempo, eu vi você na rua.
Cabelo ao vento, gente jovem reunida.
Na parede da memória
Essa lembrança é o quadro que dói mais.
Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito tudo que fizemos,
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como os nossos pais.”

Foi a Elis quem soou no rádio do carro cantando uma música composta quando eu ainda era um bebê com poucos meses no berço. Essa canção, que me fez chorar tantas vezes, hoje molhou meus olhos de novo. A canção fala sobre o tempo e a juventude, sobre a maturidade e a impotência, sobre ilusão e decepção… Sobre ganhar e perder. E a voz assertiva da Elis bateu no meu rosto pra me fazer perceber que, embora as pessoas sejam tão previsíveis e as histórias – inclusive políticas – acabem praticamente do mesmo jeito, é importante que tentemos fazer a nossa parte. É importante não desistir. É importante ter a paixão de um jovem com cabelo ao vento na rua para poder chegar a ser um velho que lembra do passado com um tom saudosista e melancólico, mas agradável. É importante acreditar até para poder descrer. Há coisas que devem ser feitas. E é nosso papel fazê-las, sem fugir, sem reclamar… Apenas fazer.

“Nossos ídolos ainda são os mesmos
E as aparências não enganam, não.
Você diz que depois deles não apareceu mais ninguém…”

Me sinto feliz por poder votar quando vejo, ouço e leio notícias de lugares onde a democracia não existe – sequer como farsa. Me sinto feliz por ter o direito intransferível de votar quando milhares de pessoas no mundo sequer sonham em expor o que pensam e sentem através do voto. Me sinto feliz por não ser obrgada a expor o meu voto publicamente, a não ser que eu queira, e por isso não ser vítima de abusos e coações. Me sinto feliz por saber ler, por ter o mínimo de formação crítica, por ter aprendido um pouco sobre a teoria e a prática da política para garantir um mínimo de consciência ao meu voto. Me sinto feliz por votar já não tendo tantas ilusões. Me sinto feliz por votar já sem heróis e sabendo que as pessoas são apenas pessoas – tão sujas e tão vulneráveis diante do poder, falíveis e humanas, mas ainda assim, pessoas. Me sinto feliz por poder votar em respeito a luta de muita gente que brigou, morreu e fez o que pôde para que eu fosse livre para expressar minha opinião hoje, inclusive aqui, neste espaço, sem ser agredida ou desprezada por isso. Me sinto feliz por poder votar e fazer parte da história do mundo. Tudo isso me fez sentir feliz por poder votar. E, ouvindo a Elis, eu pensei que a maior razão para que eu me sinta feliz em votar, é que ainda posso escolher. E quando há escolha… É porque há opção.

“Você pode até dizer que eu tô por fora,
Ou então que eu tô inventando.
Mas é você que ama o passado e que não vê,
É você que ama o passado e que não vê
Que o novo sempre vem.”

Uma vez ouvi que nada volta atrás, pois a evolução é inerente ao tempo. Embora a passos muito lentos, a humanidade é melhor hoje do que ontem. É melhor este ano do que no ano passado. É melhor nessa época do que em outras épocas. Não se trata de ser otimista, mas sim realista. Sarney foi melhor que Figueiredo. Collor foi melhor que Sarney. FHC foi melhor que Collor. E Lula foi melhor que FHC. Provavelmente, depois do Lula virá um outro um pouco melhor, e assim vamos caminhando, em ciclos, com altos e baixos, mas sempre para frente. O passado não volta, embora o ser humano tenha uma tendência esquisita de achar que tudo antes era melhor do que é hoje. E o futuro… O futuro é uma incógnita. Tudo pode acontecer – até um operário moralizador virar ícone de corrupção e um ex professor sociólogo e exilado político acreditar no neo-liberalismo. A diferença é que, cada vez mais, escolhemos às claras… Com os olhos bem abertos. Ainda há muita sujeira por cima do que vemos. Mas já enxergo melhor do que enxergava dez anos atrás. E que bom que é assim. É positivo.

“Hoje eu sei que quem me deu a idéia de uma nova consciência e juventude,
Tá em casa, guardado por Deus, contando o vil metal.”

A despeito da palhaçada, das cartas marcadas, dos escândalos, das decepções e da impunidade, como diria o Caetano, se o mundo é um lixo, EU NÃO SOU. E é por isso que eu vou escolher com cuidado meus candidatos, o mesmo cuidado que sempre tive ( e agora até mais liberta do estigma da ideologia que eu achava que era minha ). E, no domingo, eu vou votar feliz. Porque ninguém vai me fazer desistir de expressar minha vontade política. Nem mesmo os políticos.

Ah! Leia Frei Betto, o Inagaki e escute a Elis. Quem sabe assim, se você estiver desanimado, ainda consiga compartilhar comigo dessa felicidade. Feliz eleição pra você.

20 comentários sobre “COMO NOSSOS PAIS

  1. A música é linda, assim como é linda a flor que você tirou da lama que é o assunto do seu post. Lembro de um cartão que você me deu, “para enxergar novas paisagens, é preciso ter novos olhos…”. E acredito que o mundo precisa de pessoas como você, dipostas a olhar adiante com tranquilidade, otimismo e consciência.
    Não sei se vou partilhar da sua alegria no próximo domingo ( quando decidir a sua cédula, por favor, me passe, pois não me sinto animado para pensar sobre isso… ), mas hoje fiquei mais feliz por olhar com seus óculos para o direito de votar.
    Como sempre, você iluminando tudo…
    Saudades imensas de você.
    Um beijo e um queijo, de Minas, do jeito que você gosta.

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  2. Arrancando lágrimas das pessoas. Conheço bem essa música recorrente, já pensei tanto nela, já ouvi dentro e fora de épocas eleitoreiras…. Elegi vc no meu coração. Grande beijabraço, Amo vc. Beto.

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  3. Puxa, Kari, eu vou votar no domingo, mesmo estando longe daí. Acredito nos meus sonhos… E no meu país. Acredito em mim, em vc e nas pessoas decentes que eu conheço. Só isso já é motivo para que eu vá.
    Linda a lembrança das canções do Belchior e do Caetano… Linda e saudosa a imagem da Elis abrindo a garganta com força… Lindo tudo que vc escreveu.
    Um bjo gde e emocionadíssimo…

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  4. Essa música lembra minha formatura do magistério…

    E seu post me faz ter um pouco mais de ânimo pra escolher… Tá difícil, não é?
    Pois é…Desisti de anular, vou apostar em alguém… Tomara que seja uma aposta feliz!

    Beijinhos…e parabéns pela clareza e a sensibilidade ao expor suas idéias!

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  5. Karina, seu post foi simplesmente esplendoroso! Que encanto! Eu também tenho recordações muito doces das eleições e, embora menos engajada, a minha defesa dos valores humanistas foi sempre muito apaixonada. Uma vez quase chorei na frente de um cliente falando como uma forma de governo pode ser nefasta (principalmente aqui na Bahia). Mas também vou votar feliz porque dos males, sempre há um menor!
    um beijo e boas eleições para nós!

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  6. Tava lendo um posto sobre fim do relacionamento na outra pagina e quis comentar acabei vindo parar aki… hihihi.. tb amo a musica… mas queria saber como comento lá na outra pagina , alguma ligação com quem escreve aki??

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  7. Eu gosto muito dessa música. Ela é, de fato, o hino da maturidade. Do perceber que acabamos nos tornando as pessoas que passamos a vida criticando. Ela é, de fato, o hino da tolerância. Mas insuficiente para levar pra longe de mim esse luto que estou sentindo hoje. Infelizmente…

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  8. Quem sabe na próxima eleição estejamos com mais opções. Que seja mais fácil votar. Que os candidatos não percam tempo discutindo sobre quem é melhor e com o passado menos manchado, mas que invistam seu tempo em prol de algo que sinceramente eles queiram defender.
    Ótimo texto, ainda melhor por aliar-se à letra tão bem cantada por Elis. Ela sim era autêntica, falava na frente, resolvia seus problemas. Sofreu, mas quem não sofre?
    Beijo enorme, e obrigado por escrever.

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  9. Quem sabe na próxima eleição estejamos com mais opções. Que seja mais fácil votar. Que os candidatos não percam tempo discutindo sobre quem é melhor e com o passado menos manchado, mas que invistam seu tempo em prol de algo que sinceramente eles queiram defender.
    Ótimo texto, ainda melhor por aliar-se à letra tão bem cantada por Elis. Ela sim era autêntica, falava na frente, resolvia seus problemas. Sofreu, mas quem não sofre?
    Beijo enorme, e obrigado por escrever.

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  10. Poxa… Karina, ler esse texto me deu uma perspectiva! eu não me animei a tirar o título de eleitor, apesar de ter 16 anos, por que não senti prazer em ver nenhuma campanha, não vi nada que valesse a pena. me senti desesperançada, desiludida. pensei que votar não ia valer a pena (olha que absurdo!)! mas o que vc disse é verdade, é tudo verdade!
    ano que vem vou tirar meu título!
    obrigada, obrigada mesmo por me dar uma nova esperança!
    Bjs

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  11. Olá!
    Primeiro quero te dar os parabéns!
    Seu texto é muito leve e tranquilo.
    Vim parar aqui pelo nosso amigo google, estava procurando a letra da canção do Belchior e vim parar na sua página, comecei a ler por curiosidade, naum sei mas achei que se tratava de um site feito há mto tempo, já q o google sempre leva para esses sites.
    Mas fui lendo e o texto mesmo se tivesse sido escrito em outro tempo, valeria, assim como acho q daqui a anos se o lermos novamente continuará valido!
    Me lembrei da minha experiencia com a política, o gosto pelo anarquismo de como posterguei a tirar meu título depois lembrei dos meus anos no cursinho, o gosto pela política, as visões d mundo, a vontade de fazer mudança, a primeira eleição, a festa do povo no planalto a 4 anos e depois percebi a indiferença que me atingiu nesta ultima eleição, triste mas depois d uma análise aquela pontinha de esperança voltou a brilhar.
    ;^)
    That’s all!

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  12. Adorei o seu texto …. tenho 19 anos e estou fazendo um trabalho sobre essa música de Belchior na faculdade… lendo isso tivo um imenso clareamento do que devo apresentar… Parabéns pelo seu trabalho…..

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  13. Seu texto esta perfeito, não esta contaminado pelo modismo, é seu…è claro e objetivo, e correlacionado a letra de elis fiquei até sem ar…é fato que esquecemos de tudo, as lutas, a repressão, pessoas que fora coagidas por tentar expressar sua ideologia…e que o valor disso tudo ficou reduzido a banalidade com que tratamos assuntos tão sérios…piadas e mais piadas assim levamos a vida, a cada charge que vemos nas chamadas do jornal me pergunto sempre “aonde iremos parar?????” tudo virou motivo de chacota, o caos, a falta de segurança, os escândalos politicos, crianças se drogando, pais matando filhos e filhos que matam seus pais….e tudo virou piada?????????
    É uma pena…acho que podemos mais do que isso…e concordo:“Hoje eu sei que quem me deu a idéia de uma nova consciência e juventude,
    Tá em casa, guardado por Deus, contando o vil metal.” perdemos a capacidade de criticar, de cobrar dias melhores e nos acomodamos…é uma pena!!!!

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  14. Muito lindo o que vc escreveu, já pensou em fazer uma peça teatral, isso mesmo, uma peça encenada tal qual se apresenta o texto: entre o som da música de Elis e a fala do ator(atriz)interpretando as tuas palavras acima…belo seria !!!Sugiro isto pq gosto de teatro que tem futuro…

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