UMA ESTRADA LONGA

Este texto foi escrito uma vez para consolar minha queridíssima amiga Catarina, por ocasião da morte súbita do pai dela.
Achei por bem republicá-lo, porque, embora eu mesma o tenha escrito, gostaria de tê-lo escrito de novo agora, nesse momento da minha vida.

“Quando alguém vai embora, o dia, ainda que o sol brilhe e o céu esteja azul, fica cinzento, chuvoso, amuado. Um frio constante abaixa a temperatura do corpo, fazendo com que se fique encolhido e com o olhar perdido, como se tivessem apagado uma chama de dentro do coração. Chama esta que pode até voltar a se acender ( e é desejável que reacenda ). Mas sempre haverá uma falha nela – a falha deixada pelo alguém que foi embora.

Quando alguém vai embora, para nunca mais voltar, a alma leva um grande choque, por mais que a cabeça entenda que tudo, absolutamente tudo nessa vida é provisório e passageiro, que os caminhos se cruzam e se descruzam, e que certas coisas são inevitáveis. Então, a alma se veste do mais suntuoso negro, recolhendo-se, e ficando vazia e triste. Às vezes, os olhos, as mãos, a boca vazam essa tristeza; outras vezes, não há ânimo nem para isso. E assim, vestida de negro, a alma contempla a vida, esperando a hora de voltar a sorrir, ainda que o sorriso tenha um traço leve de tristeza – o traço deixado pelo alguém que foi embora.

Quando alguém vai embora, o tempo castiga quem ficou. O dia tem mais horas, os minutos mais segundos, e tudo é mais demorado e difícil. Às vezes, sente-se a densidade dos momentos passando, quase tão pesada que se poderia tocar com a mão. E, nessas horas, chega-se a ter certeza que jamais se poderá seguir com a vida em frente com a falta tamanha que aquele alguém que foi embora faz. Mas a vida segue, e quem ficou segue com ela.

Quando alguém vai embora, quase sempre vem um arrependimento, e a sensação estranha de que não há mais chances. Fica-se pensando na conversa importante que não houve, na declaração que não foi feita, no carinho que se deixou pra depois, nos erros que foram cometidos, no desabafo que não foi externado, no amor que ficou pra ser sentido, no tempo que era pra ser vivido juntos e cheio de tantas coisas, e agora tem que ser passado em solidão. E tudo isso vai formando um nó que tampa a garganta, interrompe a respiração durante o sono, não te deixa comer e provoca uma sensação de abandono que só poderia ser deixada por aquele alguém que foi embora, porque cada história é única.

Quando alguém vai embora, quem ficou percebe coisas que antes não eram percebidas, e quanto mais o tempo passa, mais se percebe. Começa a fazer falta aquele olhar de carinho ou reprovação, aquela voz invadindo a casa, aquela obrigação quase chata de ter que dar um telefonema, aquele jeito de falar e abraçar; e no começo dá a impressão de que tudo isso ficará perdido em algum lugar inatingível. As datas especiais ficam doloridas. Os códigos que só podem existir entre uma e outra pessoa que se gostam ficam sem sentido. A voz daquela pessoa soa em momentos inesperados, e o coração dói levemente. E quem ficou percebe que ninguém pode tomar o lugar daquele alguém que foi embora.

Quando alguém vai embora, as dúvidas começam a rondar a cabeça, e a fé sofre um abatimento. Percebe-se que o mais forte dos homens, a mais abençoada das mulheres, o mais saudável ser, um dia, sucumbe. Percebe-se que a existência é frágil. Vem a raiva, a percepção da impotência, o medo. Duvida-se da vida, da morte, de Deus, das pessoas, do amor. Assim como vem, as dúvidas vão e voltam sem resposta, porque não há respostas. E tudo isso pode virar amadurecimento ou amargura, dependendo de como quem fica quer aproveitar a experiência de perder o alguém que foi embora.

A verdade é que o mundo todo acaba quando alguém vai embora. E não dá a menor vontade de reconstruir nada. Nada.

Quando alguém vai embora, normalmente, se tem o carinho dos outros que ficam, e, passando pela mesma dor ou não, se preocupam em ser um consolo. E os abraços, os carinhos, as palavras, as lágrimas solidárias, o calor da alma dessas pessoas vai começando a esquentar a alma fria de quem ficou, a fazer efeito e recuperar o coração quebrado. E é nessas horas que se percebe o valor que tem dividir a vida com muitas pessoas em todos os momentos, porque são elas, e não o alguém que foi embora, que vão ajudando a levantar e olhar pra frente.

Quando alguém vai embora, quem ficou começa a trilhar uma estrada longa, que tem um nome melancólico – saudade. Essa estrada, a princípio, é enlameada, escorregadia, escura, esburacada; e muitas vezes faz cair, machucar, e quase desistir de andar. A dor é tão profunda, e parece estar enraizada em um lugar tão inacessível, que parece que nunca vai sarar. Mas ela sara. Aos poucos, ela sara. E aí chega a hora de deixar o tempo fazer seu trabalho. Chega a hora de sorrir de novo. De deixar as lembranças serem somente lembranças. De tirar o manto negro da alma. E, de repente, a estrada, apesar de a cada dia ter mais uns passos de distância, vai se tornando cada vez mais leve, mais iluminada, bonita até. E quem ficou percebe que, na verdade, aquele alguém pode até ter ido embora, mas nunca deixou de existir, e isso é uma forma de vida. A mesma vida que segue por tantas outras estradas que vão se cruzando, descruzando, e nunca voltam. E percebe-se que só se tem a agradecer a oportunidade de ter estado com aquele alguém que foi embora, mas sempre estará presente, de alguma forma. E então vem aquela paz que só o amor de verdade pode dar.”

8 comentários sobre “UMA ESTRADA LONGA

  1. Teu texto é simplesmente perfeito. Traduz dolorosamente toda a dor que uma ausência pode causar, mas também sopra um alento de esperança, de que mesmo presente, (por que não tem como extirpar aquele que parte da gente – e nem devemos querer fazer isso), todos nós somos capazes de recomeçar.

    É uma estrada, como você mesmo disse, longa, mas observe que ao longo dela, mãos , ombros, falas amigas… estarão sempre próximas, ao alcance de suas mãos. Um simples gesto e terá sempre quem tem ampare, quando os os joelhos fraquejarem ou os pés parecerem cansados demais para caminhar.

    Beijo e força,

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  2. É incrível Karina, sempre que estou deprê passo por aqui… hoje não passei pela minha dor, mas, porque a tia de uma grande amiga morreu e ela está na fossa. E justamente esse lindo post, essa mensagem que expressa tudo o que eu queria dizer a ela… tratei de enviar o link.
    A mensagem serviu para mim também, ainda estou me recompondo depois da morte do meu noivo em um acidente de moto. Salvei a mensagem e vou reler sempre que as lágrimas vierem… muito obrigada por existir querida.

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  3. Ai, miga… Eu respeito tanto a sua intuição, a sua sabedoria… INdo te visitar, senti que, embora o que aconteceu tenha sido horrível, tinha que ser mesmo com você, que é tão forte e tão sábia. Você vai ficar bem, e vai continuar espalhando felicidade por esse mundão de meu deus, minha pessoinha iluminada!
    Te amooooooooooooooooo de montão!
    Te admiro mais ainda!

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  4. Sua sensibilidade faz de você uma pessoa absolutamente singular nesse mundo de coisas comuns…
    Que Deus te abençoe, Karina, para que vc continue a abençoar todos aqueles que tem a grata oportunidade de ler o que lhe sai da alma transformado em palavras.
    Muita luz e muito de Jesus neste Natal…
    Toda ternura pra você.

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  5. Você escreve lindamente bem. Traduz cada pedaço do seu sentimento em palavras, e com certeza está ajudando a muita gente e a si mesma. continue assim. E por mais que o mundo e a vida te derrubem e a façam sofrer, continue caminhando, continue. é o que se pode fazer. muita força. Desejo a você, de coração, muita paz de espírito. que esse 2009 acalme o sofrimento e traga paz. tô aguardando o dia em que voltarei a ver posts lindos contando de todo amor que tem guardado aí.
    Um dia essa ferida vai cicatrizar e você vai sorrir novamente. E o que é bom SEMPRE fica.

    Um beijo, querida ;*
    fica com Deus.

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  6. Perdi um grande amigo, melhor dizendo um irmao q Deus me permitiu escolher, tbm foi muito rapido me pegou de surpresa, esta muito dificil pois toda vez que acordo e lembro que não posso mais ligar, eu sofro. Sempre achei que ele estaria ali , pronto para me dar seu apoio e amor, tenho tantas lembranças.
    Conheci ele qdo tinha 15 anos se passaram dez anos, mas nunca deixamos de nos falar e manter nossos laços de amizade e percebo agora que amava ele muito mais do que eu imaginava. E me lembro das diversas provas de carinho e amor que ele me deu nos meus piores momentos. No momento me divido em fases, em algumas relembro nossas farras, brincadeiras e segredos que me fazem rir e acalentar a saudade, em outras me culpo pela pouca atenção devido a correria do dia dia, a ligação do natal que não retornei, e do ultimo encontro não ter ficado um pouco mais, como podia imaginar que seria a ultima vez!
    Mas fiquei muito confortada em ler estas palavras reflete muito o momento que estou passando.
    Muito bonito seu texto, parabens pela sua forma de se expressar.
    bjux

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